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Editorial - Anabela Fernandes

28 junho, 2024≈ 5 mins de leitura

Para uma intersubjetividade enunciativa, a Conversadeira II de Eduardo Souto de Moura.

© Amorim

Camões e as humanidades numa sociedade digitalizada

Como se articula a experiência de ler a obra de Camões e a produção de conhecimento numa sociedade digitalizada, onde os dados multiformes fazem parte do “estudo macroscópico da história cultural”, referido por Franco Moretti?

Os diversos textos sobre a obra e o próprio autor que têm assinalado as comemorações do V centenário do nascimento de Luís de Camões indiciam releituras em que o prefixo ‘re-' antecipa a possibilidade de metamorfoses sucessivas como só os textos clássicos conseguem criar: recorrendo ao axioma de Italo Calvino em Porquê Ler os Clássicos?, “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” A temporalidade de uma obra clássica tende, pois, a erigir-se contra o esquecimento e a ocultação da experiência transmitida (a Erfahrung de Walter Benjamin), cuja construção discursiva imaginada é tecida através de matizes semânticos, filtrados por vivências e conhecimentos posteriores.

A experiência vivida na leitura de um poema como Os Lusíadas torna possível a descoberta de versos extraordinários sobre a compreensão do mundo. Na longa conversa a que assistimos entre o sujeito poético e o rei D. Sebastião, o dedicatário do poema, os heróis e as heroínas definem-se pela grandeza em que se conseguem superar, mas também pelos limites das suas vulnerabillidades. Ora, o poema épico de Camões é ancorado num campo mostrativo situacional (demonstratio ad oculos, segundo Karl Bühler) — “E, vejamos, entanto, que acontece” (VII, 15) —, procurando o sujeito enunciador convencer os seus interlocutores (o rei, no poema, e os leitores do texto) da sua mensagem; ou seja, o discurso consubstancia-se em instrumento de ação e em forma de comportamento. Admitida a concomitância da celebração e da ambiguidade humanas nesta obra, na enunciação subjetiva do Poeta, releva-se a valorização das artes no final do Canto V e retomada no Canto VII. Às artes cabe o poder de imortalizar a realidade, pelo que de nada valerá a experiência humana se a sua memória não for materializada na expressão artística.

A reconfiguração das práticas sociais de interação por meio de redes digitais tem efeitos significativos nas humanidades. Que lugar ocupa a imaginação, entendida como repertório do potencial do hipotético, na comunicação multimodal da interface digital?

Retomando a quarta lição, a Visibilidade, de Italo Calvino em Seis propostas para o próximo milénio, uma pedagogia da imaginação ‘icástica’ poderá potenciar o reconhecimento de aspetos que estão na génese dos textos clássicos: “a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura aos seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência do sensível, de importância decisiva na visualização como na verbalização do pensamento.” (2006 [1990]: 114-115).

Sendo a memória sempre conjugada no presente, e a sua perceção, irredutivelmente, singular, é na redescoberta da intencionalidade da mensagem — “Pera porem as cousas em memoria/ Que merecerem ter eterna glória!” (VII, 82) — que a interpretação assume uma dimensão performativa intersubjetiva in perpetuum mobile. Dessa conversa entre leitores e a obra de Camões, situada num tempo e espaço específicos, emerge o que de mais profundo há nas práticas culturais: o discernimento de nexos exofóricos em que nos revemos ou de que nos distanciamos, que carece de tempo para não nos transformarmos em lotófagos.


Anabela Fernandes, Investigadora integrada do CEIS20, Co-coordenadora do Grupo de Investigação 7 - Humanidades Digitais e Professora Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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