Estudo indica que os cuidados de saúde preventivos de pessoas com 50 ou mais anos foram mais afetados durante a primeira vaga da pandemia

Através da análise dos efeitos das necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas em 2020 no estado de saúde das pessoas em 2021, a investigação, liderada pela Universidade de Coimbra, chama a atenção para a forma como as crises pandémicas podem impactar os sistemas de saúde.

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Catarina Ribeiro
18 junho, 2024≈ 7 mins de leitura

Da esquerda para a direita: Óscar Lourenço, Carlota Quintal, Micaela Antunes e Luís Moura Ramos, docentes e investigadores da UC.

© UC | Ana Bartolomeu

A primeira vaga da pandemia de COVID-19, em 2020, afetou a prestação de cuidados de saúde preventivos – como o diagnóstico de vários tipos de cancro –, sugere um estudo de uma equipa de investigação da Universidade de Coimbra (UC), que analisou dados de 123 mil pessoas com 50 ou mais anos de idade, de 28 países, a grande maioria da União Europeia.

Através da análise dos efeitos das necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas (NNS) em 2020 no estado de saúde das pessoas em 2021, a investigação chama a atenção para a forma como as crises pandémicas podem impactar os sistemas de saúde, em particular o diagnóstico de doenças graves. Até ao momento, os estudos sobre a associação entre as NNS e o estado de saúde são escassos, e os poucos que existem com dados recentes usam informação sobre países não europeus.

Mais concretamente, a equipa de investigação – composta por Carlota Quintal, Micaela Antunes, Luís Moura Ramos e Óscar Lourenço, investigadores do Centro de Investigação em Economia e Gestão (CeBER) e docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) – apresenta uma relação entre necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas na primeira vaga da pandemia, em 2020, e o reporte de diagnóstico de cancro em 2021.

As necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas surgem quando existe uma diferença entre os serviços considerados necessários pelos indivíduos (com ou sem validação externa) e os serviços efetivamente prestados, e são usadas como indicador do acesso aos cuidados de saúde, por exemplo, pela Organização Mundial da Saúde e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

“No caso concreto da pandemia de COVID-19, os níveis de NNS em 2020 atingiram valores sem precedentes”, sublinha a equipa, acrescentando que “além do medo da infeção pelo SARS-CoV-2, que afastou as pessoas dos serviços de saúde, estes serviços também cancelaram inúmeros cuidados de saúde programados”.

No artigo científico Unmet healthcare needs among the population aged 50+ and their association with health outcomes during the COVID-19 pandemic, publicado no European Journal of Ageing, os investigadores analisaram dados recolhidos através do inquérito Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe (SHARE), dirigido a pessoas com 50 ou mais anos de idade, de 28 países (países da União Europeia, exceto Irlanda, e incluindo Suíça e Israel). Esta base de dados contém informações de 123 mil pessoas, nomeadamente informações demográficas, socioeconómicas, sobre saúde e estrutura familiar.

Os docentes da UC analisaram três motivos para a ocorrência de necessidades de saúde não satisfeitas: 1) consultas médicas agendadas que foram adiadas (o motivo mais prevalente, com 25% a 12% das pessoas a relatarem pelo menos uma situação entre 2020 e 2021, respetivamente); 2) desistência de algum cuidado de saúde por medo da COVID-19 (12% das pessoas experienciaram pelo menos uma vez esta situação em 2020, e 9% em 2021); 3) solicitação de consulta não atendida (5% tanto em 2020, como 2021).

Uma lição para o futuro é a necessidade de equilibrar mais a atenção dada aos doentes afetados pela pandemia e aos restantes e, dentro destes últimos, não descurar cuidados preventivos com maior potencial para afetar a sua saúde, destacam os investigadores.

A equipa de investigação explica que, neste estudo, “não se sugere que as NNS resultaram em cancro, mas sim que as pessoas deixaram de fazer exames em 2020 que afinal eram pertinentes e que, possivelmente, tiveram um diagnóstico tardio”. Apesar disso, “os resultados revelam que os sistemas de saúde não negaram a prestação de cuidados a quem apresentava maior risco de vida”, elucidam os docentes. “Encontrámos uma associação negativa entre NNS e mortalidade, o que parece indicar que os sistemas de saúde priorizaram doentes mais graves, mostrando a capacidade de identificar os indivíduos que corriam maior risco de vida e dar-lhes acesso prioritário, mesmo num contexto adverso e inédito”, avançam.

A dimensão assistencial mais afetada diz respeito aos cuidados preventivos. “Os resultados da nossa análise indiciam que em 2021 as chances de novos diagnósticos de cancro (cancro ou tumor maligno, incluindo leucemia ou linfoma, excluindo cancros da pele de menor gravidade) são maiores entre os indivíduos que tiveram cuidados de saúde cancelados, negados ou que por medo faltaram às consultas ou exames em 2020”, avançam os investigadores.

Neste estudo “não é sugerido que estas consultas ou exames pudessem ter evitado o diagnóstico de cancro, mas sim que se estas pessoas não tivessem experienciado necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas em 2020 poderiam ter recebido o seu diagnóstico mais cedo”, elucidam Carlota Quintal, Micaela Antunes, Luís Moura Ramos e Óscar Lourenço. “No caso do cancro, o tempo é fundamental para a morbilidade e mortalidade associadas”, reiteram.

Sobre o contexto português, segundo dados de um outro estudo também conduzido pela mesma equipa de investigação, “60% dos indivíduos inquiridos pelo Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe em 2020 tiveram pelo menos uma NNS, sendo o cancelamento por parte dos serviços de saúde o motivo mais frequente”, destacam os docentes. “Tendo em conta a magnitude do fenómeno das NNS em Portugal na primeira vaga da pandemia, os resultados relatados devem ser causa de preocupação, pois fazem-nos acreditar que tivemos casos de diagnóstico de cancro tardio”, acrescentam.

“Uma lição para o futuro é a necessidade de equilibrar mais a atenção dada aos doentes afetados pela pandemia e aos restantes e, dentro destes últimos, não descurar cuidados preventivos com maior potencial para afetar a sua saúde”, remata a equipa de investigação.

O artigo científico está disponível aqui.