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Uma nova abordagem à prática de atividade física para a melhoria da qualidade de vida de pessoas com perturbação do espectro do autismo

Efeitos de um programa de exercício físico na Aptidão Cardiorrespiratória e Estereotipias Motoras em jovens e adultos com Perturbação do Espectro do Autismo é o tema da dissertação da Sofia Sampaio de Ataíde, estudante do mestrado em Exercício e Saúde em Populações Especiais, na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra, que é orientada por José Pedro Ferreira e Maria João Campos. O primeiro contacto da Sofia com populações especiais começou no 12.º ano, a partir de um estágio na Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo de Coimbra, e nunca mais parou. Há mais de cinco anos que tem vindo a fazer voluntariado em diversas instituições que apoiam pessoas com as mais variadas patologias. Foi com pessoas com diagnóstico do espectro do autismo que escolheu trabalhar para desenvolver a dissertação de mestrado, com a missão de recorrer à prática de atividade física para melhorar a qualidade de vida destas pessoas, tendo em vista uma melhoria da aptidão cardiorrespiratória e, consequentemente, uma redução significativa das estereotipias motoras na vertente desportiva.

Para o desenvolvimento da tua dissertação de mestrado, estás a estudar um grupo de pessoas, desenvolvendo com elas atividades físicas. Quem são estas pessoas que estás a acompanhar e qual o objetivo destas sessões?

Foram recrutados 18 jovens e adultos com Perturbação do Espectro do Autismo, com vista à implementação de um programa de exercício físico. As sessões são dirigidas por técnicos de exercício físico, um psicólogo clínico e quatro monitores. Decorrerão durante 12 semanas, com um máximo de 24 sessões, ocorrendo duas vezes por semana, ao longo de 90 minutos, com o objetivo de trabalhar componentes de aptidão física direcionada para a saúde e para o bem-estar.

Os participantes são submetidos a dois momentos estratégicos, um no início e outro no final da intervenção, que se subdividem em quatro fases de trabalho. Num primeiro momento, fazemos a avaliação das medidas antropométricas. Depois, aplicamos duas escalas de avaliação, uma para perceber o perfil e o nível funcional de cada participante e outra para que seja possível identificar qual a estereotipia motora presente com maior regularidade em cada participante e a sua frequência. Por último, é avaliada a aptidão cardiorrespiratória em dois contextos diferentes, no terreno e em laboratório. Neste contexto, um dos objetivos passa por compreender se o Chester Step Test é capaz de diferenciar a capacidade funcional e a magnitude da resposta cardiorrespiratória de indivíduos com Perturbação do Espectro do Autismo, comparando-o com a resposta induzida pelo Six Minute Walk Test.

Como é que o trabalho com populações especiais surge como uma possibilidade no teu percurso académico?

Desde que iniciei o meu percurso na academia, decidi voluntariar-me em diferentes instituições na área do exercício e atividade física, nomeadamente na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APPCC), na Associação de Apoio à Inclusão do Cidadão com Trissomia 21 (Olhar 21), no Sport Club Conimbricense, na modalidade de Futebol para Cegos, e mais recentemente na Angel - Associação Síndrome de Angelman. Esta experiência permitiu-me estar próxima da área, abrir o conhecimento sobre um leque variado de patologias e conhecer profissionais relevantes. Mas, acima de tudo, fez-me compreender qual era a minha vocação.

Este ano tive a oportunidade de ter um contacto mais sistemático com a investigação e estou a gostar imenso, porque me desafia constantemente. Mas não deixo de parte a gratificação que sinto no contacto com o próximo, com as pessoas. Para mim, não é concebível existir ciência sem um equilíbrio entre o contacto com pessoas e a investigação fechada no gabinete.

Qual é o principal objetivo do teu projeto de mestrado?

Vou começar por explicar os conceitos centrais que mobilizo para o desenvolvimento da dissertação. A Perturbação do Espectro do Autismo é uma desordem do desenvolvimento neurobiológico, que é diagnosticada na infância. Os principais sintomas são o défice na interação social, as dificuldades ao nível da comunicação verbal e não verbal e também comportamentos repetitivos e estereotipados. Na última década, tem-se percebido que existe um aumento do número de casos da perturbação. A frequência cardíaca e o V02 máximo destas pessoas acabam por ser inferiores quando comparados com os seus pares com desenvolvimento tido como típico. Isto deve-se à baixa aptidão cardiorrespiratória que as pessoas com este diagnóstico têm e a um comprometimento ventilatório, que futuramente irá contribuir para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.

Um dos principais conceitos mobilizados para a dissertação é a aptidão cardiorrespiratória, que se traduz na capacidade de realizarmos exercícios num longo período de tempo englobando grandes grupos musculares, que pode ir de uma intensidade moderada a elevada. É, portanto, um marcador fisiológico de saúde, que diz respeito à capacidade máxima de oxigénio que conseguimos captar através do nosso sistema respiratório. Neste contexto, o treino aeróbio pode ajudar a reduzir o risco de hipertensão, diabetes, obesidade e ansiedade, através de adaptações cardiovasculares – como o volume de sangue bombeado, a frequência cardíaca, o débito cardíaco, o fluxo sanguíneo e a pressão arterial – e também através das adaptações respiratórias, como o volume pulmonar, a frequência respiratória, a ventilação pulmonar e a difusão pulmonar. E é neste quadro que se torna crucial encontrar métodos fiáveis que avaliem esta capacidade na população que estou a acompanhar no projeto de mestrado.

Outro conceito importante é o de estereotipias motoras, que são movimentos involuntários, coordenados, de padrão previsível, frequentemente mantidos por um reforço automático. Tratando-se de um distúrbio do movimento hipercinético, variam de leves a severas, dependendo da topografia, frequência e extensão da sua interferência no exercício em curso. A prevalência de estereotipias é semelhante em jovens e adultos, sendo que a estereotipia motora persiste ao longo do tempo sem intervenção, estando presente em cerca de 90% das pessoas diagnosticadas com Espectro do Autismo, acabando por persistir em idade adulta, onde apenas um pequeno número é capaz de as controlar.

Neste sentido, com a mobilização destes conceitos e com processo de trabalho anteriormente descrito, pretende-se averiguar se através de um programa de exercício físico específico é possível uma melhoria da aptidão cardiorrespiratória e, consequentemente, uma redução significativa das estereotipias motoras na vertente desportiva, social e pessoal de cada participante, visando a prática de atividade física como um potencial tratamento e/ou terapia.

Quais é que têm sido os maiores desafios do processo de construção de um projeto de investigação de mestrado?

Quando escolhemos a metodologia, existe uma tendência geral, consequente da falta de experiência em investigação, para idealizar o estudo mais estruturado e inovador quanto possível, esquecendo que apenas se tem nove meses para a sua realização. Para a ciência, nove meses é um ápice. Por isso, o conselho que dou é que optem por uma metodologia simples e fiável, 70% baseada na literatura e 30% na inovação, porque na realidade é necessário reformular diversas vezes o plano de trabalho. Em todo este processo, tenho tido a oportunidade e a sorte de ser acompanhada pelo professor José Pedro Ferreira e pela professora Maria João Campos, que graças ao seu conhecimento conseguem visualizar todo o processo de pesquisa e elucidar-me sobre qual o melhor caminho a seguir.

Gostava ainda de referir que quando desenvolvemos uma investigação que envolve menores ou pessoas com deficiência esta vai requerer uma grande parte burocrática. E nem sempre estas questões se resolvem no tempo que idealizamos. Isto pode acabar por nos desviar do foco no projeto. É evidente que são questões importantes, mas precisamos de saber como dar resposta a todas as dimensões, sem nunca descurar nenhuma.

O mestrado é o culminar de cinco anos de aprendizagem e o último ano de trabalho traz consigo muitas questões e imprevistos. E acabamos por levar desta experiência uma lição de humildade, porque percebemos que não existem certezas absolutas e que está nas nossas mãos a evolução. Há ainda muito para descobrir e aprender e devemos estar cientes disso.

Quando ingressaste no ensino superior, imaginaste que seria este o teu percurso académico?

Não tive dúvidas que esta seria a área a seguir. Ao trabalharmos com estas pessoas, estamos em constante aprendizagem, tanto profissional como pessoalmente. Acho que a população em geral ainda acaba por desfazer as capacidades que têm. No entanto, e por experiência própria, estou convicta que têm sempre algo para nos ensinar diariamente. Os cinco anos de voluntariado com pessoas com diferentes capacidades permitiu-me conhecer histórias de vida bastante diferentes da minha. E, como costumo dizer, ninguém consegue investigar sem ter um contacto próximo com a prática. As grandes problemáticas estão nas instituições e, por isso, devem existir ligações estruturadas e consistentes entre os dois mundos, o prático e o científico. Ao longo deste caminho, percebi que há um grande potencial, mas também uma grande necessidade de evolução. E este ano tenho procurado deixar o meu contributo através deste projeto, particularmente na área do tratamento a partir da atividade física.

Ao longo da entrevista, já foste deixando algumas dicas para estudantes que estão também a fazer investigação. Que outros conselhos deixarias a alunas/os que pretendem trabalhar ou que estão a começar a trabalhar nesta área da atividade física para populações especiais?

O momento da elaboração da dissertação de mestrado é como uma transição numa peça, em que passamos a ser o ator principal. E passa a ser-nos exigido mais compromisso, mais método, mais resiliência e mais autonomia. E é aqui que se une a nossa experiência pessoal com a experiência profissional. Para que a motivação nunca nos falte, esta não pode estar alicerçada apenas na obtenção de um grau ou numa boa classificação. A nossa motivação deve seguir o pressuposto de que estamos a trabalhar para melhorar a qualidade de vida de pessoas. E, neste processo, os frutos que vamos colher vão depender de um esforço colaborativo entre os orientadores, o estudante, os participantes, os tutores legais e as instituições. Nós somos um grupo. E o conhecimento que estamos a produzir é o resultado de toda esta partilha e é feito de pessoas e para pessoas.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Fotografia: Paulo Amaral, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 28.02.2022