/ Como se Desenha uma Investigação

Conhecer a experiência e as dinâmicas de vida de mulheres jornalistas freelancers em Portugal e no Brasil

Viveu no Brasil a experiência de trabalhar como jornalista freelancer e veio para Portugal fazer mestrado. Hoje, a Bibiana Garcez Silva dedica o seu projeto de doutoramento ao estudo de uma problemática que dialoga com o seu percurso profissional: as experiências e as dinâmicas de vida de mulheres jornalistas freelancers. Com o projeto de investigação Género e jornalismo freelancer: as mulheres no Brasil e em Portugal, orientado por Maria João Silveirinha, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e coorientada por Carolina Matos, da City University of London, a estudante do doutoramento em Ciências da Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra pretende deixar um contributo para perceber como trabalham e como vivem estas mulheres. Mais um passo para entender as modalidades de trabalho que cabem dentro do jornalismo.

Qual é o objeto de estudo do teu projeto de investigação?

O meu projeto de doutoramento estuda as mulheres jornalistas freelancers, no Brasil e em Portugal. A minha ideia é tentar entender as dinâmicas de trabalho e de precariedade delas, num mundo de fragmentação do trabalho e de individualização. Procuro também entender as implicações dessas modalidades de trabalho nas trabalhadoras e para o jornalismo. Tem essas duas vertentes, mas sempre focada nas mulheres, numa perspetiva feminista, e não de género, e também com uma perspetiva da economia política da mídia.

Que novos entendimentos pretende trazer este trabalho?

Quando a gente fala de Ciências Sociais aplicadas é muito mais difícil pensar num impacto da mesma forma que as pessoas das Engenharias, por exemplo, podem pensar. Mas diria que o projeto pretende jogar luz em algumas coisas e procurar assuntos que sejam mais próximos da gente dessas áreas. Há duas coisas que para mim são muito importantes e que estão sempre presentes nos meus trabalhos académicos, e não só: primeiro, entender que tem uma pessoa, ou várias pessoas, por trás da produção jornalística; segundo, entender que as mulheres são sujeitas a pressões específicas por causa do seu género. E por mais que isso possa ser facilmente compreendido, muitas pessoas ainda não compreendem e a gente precisa elaborar mais conhecimento para que ele chegue a mais pessoas, como jornalistas, público geral e academia. A gente precisa entender de que formas é que isso acontece e não apenas dizer que há impactos específicos sobre as mulheres. Precisamos dizer quais são eles e como eles se desdobram. É neste sentido que desenvolvo o meu trabalho.

Quais são as principais técnicas de pesquisa utilizadas?

O meu projeto está dividido em quatro etapas. A primeira passa pela pesquisa documental e, basicamente, serve para tentar entender qual é o tamanho desse universo de mulheres jornalistas freelancers. É uma pergunta muito difícil de se responder, porque é um trabalho que está mais dentro da informalidade, menos institucionalizado, especialmente no Brasil, porque como não existe uma carteira profissional de jornalista é mais difícil de contabilizar. Mesmo o número geral de jornalistas que existem no país varia. Ou seja, é algo que é preciso perceber para continuar a pesquisa.

Depois desta etapa, a minha ideia é fazer um inquérito online direcionado a jornalistas freelancers – tanto homens, quanto mulheres, a aplicar no Brasil e em Portugal – para tentar entender algumas características do trabalho que sejam comuns aos e às freelancers, mas também quais são as diferenças conforme o género.

A fase seguinte passará por uma análise representacional das jornalistas freelancers. A minha ideia é coletar perfis de LinkedIn de jornalistas freelancers e fazer uma análise de conteúdo, tanto quantitativo como qualitativo, e textual, da forma como as pessoas se apresentam nesta rede. Isso visa entender como é que funciona o self branding, essa promoção da marca do ’eu’, que acontece muito não só no freelencing. De uma maneira geral, é uma característica dos dias de hoje, que está relacionada com uma subjetividade empreendedora. Neste momento, ainda estou com algumas questões em relação a esta rede porque, apesar de o LinkedIn ser uma rede profissional, é importante perceber se é a rede mais relevante no contexto da minha investigação. Tenho tentado perceber o que fará mais sentido a partir das pré-entrevistas que tenho vindo a fazer no âmbito da investigação.

E, por fim, a última e mais importante fase serão as entrevistas, semiestruturadas e em profundidade, só com mulheres jornalistas freelancers no Brasil e em Portugal, para aprofundar a experiência vivida por elas e as perceções que elas têm. A ideia é entender, na prática, como é que funciona essa dinâmica de trabalho na vida delas, o que é que motivou elas a trabalhar dessa maneira, se elas preferem continuar dessa forma, como é a organização de trabalho e financeira.

Como é que surgiu a ideia de trabalhar esta temática? Surge da tua experiência pessoal ou de algum desafio que te foi lançado?

Este projeto foi mudando muito ao longo do doutoramento. Comecei a pensar nele ainda no ano curricular, porque apliquei para conseguir bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Tinha entrado no doutoramento a pensar em estudar algo completamente diferente, como Habermas, racionalidade… E aí eu comecei a pensar no meu trabalho anterior do mestrado, que foi sobre jornalismo feminista, e eu percebi que puxei muito a minha discussão para as mulheres jornalistas. E eu trabalhei como jornalista – inclusive como freelancer por algum tempo – e acho que as duas coisas se juntam. Mas tinha ficado um pouco esquecido que eu tinha tido essa experiência. E aí eu e a minha orientadora começámos a desenhar alguma coisa relacionada com a forma como mulheres de diferentes áreas são afetadas no jornalismo. A gente sabia que queria olhar para a profissão de jornalista com uma perspetiva feminista.

Esses trabalhos sobre mulheres jornalistas que estão nas redações já são feitos há, pelo menos, 30 anos, e, por isso, não via nada de novo para explorar. E aí a gente começou a pensar falar com pessoas em diferentes soluções profissionais, um trabalho super qualitativo. Começámos a escrever o projeto e a perceber que seria interessante explorar as freelancers. Explorámos e discutimos o assunto, nomeadamente os conceitos base para o trabalho, como a subjetividade empreendedora, que vem sendo muito trabalhado pelas autoras feministas na área da mídia, como a Rosalind Gill, que tem trabalhado muito a perspetiva dos efeitos psicológicos que essa dinâmica do neoliberalismo tem nas trabalhadoras. E comecei a pesquisar um pouco sobre as jornalistas freelancers e descobri que havia pouquíssimas coisas. Tinha um trabalho (uma tese de mestrado e um artigo) no Brasil e aqui, em outros países europeus e no Canadá, havia alguns artigos. Comecei a perceber que havia aqui um nicho, numa área que me interessava, e comecei também a puxar a temática do trabalho. O trabalho sempre foi algo que me interessou muito, de outras maneiras. Essa ideia de pensar sobre direito do trabalho e o mundo do trabalho são coisas que sempre me tocaram, porque a minha família tem muitos advogados trabalhistas e eu cresci ouvindo essas coisas. E achei que essas coisas nunca me iam interessar, mas interessam, só que de outra perspectiva.

E que motivos te trouxeram a Portugal para fazer um doutoramento?

Eu estava trabalhando numa rádio muito grande como repórter e tinha um contrato muito ruim. Na época, eu já queria fazer mestrado e eles me ofereceram um contrato sem termo (eu tinha um contrato temporário), mas que era ainda pior. Aproveitei para perguntar se eles teriam disponibilidade para me liberar um dia por semana para fazer as aulas do mestrado e disseram que não. E foi assim que me despedi.

Acabei por trabalhar em outras coisas – de produção de filme a atendente de mesa – e comecei a pesquisar mestrados em lugares fora do Brasil. Pesquisei todos os mestrados em comunicação em Portugal e o daqui de Coimbra tinha uma disciplina que era Media, Género e Representações. E, na época, eu já sabia que queria fazer alguma coisa ligada aos estudos feministas. E a UC era a única universidade que tinha algum foco em género já no currículo estrutural do curso. Me candidatei apenas ao mestrado cá, meio que pausei a minha vida no Brasil, mesmo não fazendo a menor ideia se iria passar. Passei e aí vim, fiz o mestrado, pensei que iria ficar por ali e voltar ao Brasil, mas acabei por pensar em inscrever-me num doutoramento. Falei com a minha orientadora sobre essa possibilidade e assim foi.

Quais são os maiores desafios do processo de construção de um projeto de investigação de doutoramento?

Para mim foi um processo um pouco delicado entender que agora o meu trabalho é estudar, finalmente. Que tenho bolsa, que sou remunerada para isso e que não tenho mais que equilibrar isso com outras coisas, porque sempre trabalhei em muitas coisas. E, por isso, entender que tinha que me dedicar só a isto foi um processo delicado, porque é algo muito exigente.

Outro desafio são as dinâmicas psicológicas, pensar se estou a fazer o suficiente, se o que produzo está bom o suficiente. Essa parte para mim sempre foi um pouco delicada e ainda estou trabalhando nisso.

De resto, tive muita sorte no doutoramento. Tive bolsa no primeiro ano, tenho uma orientadora que é maravilhosa e muito próxima de mim, que me ajuda a ter calma quando eu fraquejo. Temos um contacto muito próximo e isso facilita tudo. Nestes últimos tempos, também fui colaborando com projetos de investigação, o que também ajudou, porque me ensinou muito sobre investigação na prática. Ajudou também a perceber quais são os meus limites na investigação.

Gostarias de partilhar algumas dicas com os/as estudantes que estão também a desenvolver um projeto de investigação?

Acho que conversar com outras pessoas é muito importante, porque esse processo da pesquisa pode ser muito solitário. Mas não deveria ser assim, porque conversar com as pessoas nos traz novas perspetivas. Para quem está começando, acho que ter uma proximidade com os professores e as professoras é importante, aproveitando para partilhar ideias. Isso sempre me ajudou muito na minha vida.

É importante falar também com colegas, entender quais são os projetos que as pessoas estão tentando fazer, e colegas mais velhos e mais velhas, que já têm a pesquisa mais estruturada. É importante conviver com pessoas que estão na mesma fase que tu, com pessoas que estão numa fase mais estruturada do seu projeto e também com pessoas que são referências para nós, como as nossas professoras e nossos professores, e outras pessoas da Universidade, como as que estão em centros de pesquisa. Acho que isso sempre faz a gente repensar o nosso projeto, dar uma luz em alguma coisa, conhecer um novo conceito ou um novo livro.

Diria que ter metas também facilita todo o processo, para não parecer um monstro gigantesco. E fazendo as coisas aos poucos acho que ajuda. Nunca vamos conseguir ler tudo, mas ao estabelecermos metas vamos saber que estamos a fazer o melhor que podemos e vai ajudar nessa autocobrança que fazemos.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Fotografia: Paulo Amaral, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 26.05.2022