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“Nem menos, nem mais, direitos iguais”: estudar a comunidade queer em prol de uma sociedade mais justa e segura para todas as pessoas

Utopias Reais Queer: Resistências num Mundo Heterocisnormativo é o tema da dissertação de mestrado de Pedro Fidalgo, estudante do mestrado em Relações Internacionais - Estudos da Paz, Segurança e Desenvolvimento, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, orientado por Teresa Almeida Cravo. O ingresso no ensino superior foi marcado pelas dúvidas sobre se alcançaria o sucesso académico, mas também pela intensa vontade de entender mais sobre o funcionamento da sociedade, particularmente sobre as desigualdades e as injustiças. E foi com esta missão que o Pedro chegou aos estudos queer, em busca de um novo contributo para que todas as pessoas, independentemente da sua expressão de género e de sexualidade, se sintam confortáveis e seguras na sociedade. É com o recurso às perspetivas de pessoas que se identificam como queer que o Pedro tem construído o seu projeto de mestrado, para dar a conhecer a história destas pessoas e, em simultâneo, criar um política de esperança que comprova que é possível construir um mundo melhor para todas as pessoas.

Qual é o objetivo do teu projeto de mestrado?

Em linhas muito gerais, o projeto pretende contribuir para o conhecimento sobre pessoas queer. Importa especificar que eu entendo o termo queer de uma forma abrangente, enquanto um termo guarda-chuva, que inclui todas as pessoas cuja identificação ou performance em termos de sexo, género e/ou sexualidade é não normativa, que remete para o grupo que denominados com a sigla LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, género fluído, pessoas não binárias, entre outras). O projeto parte do reconhecimento de que existe uma vulnerabilidade desproporcional deste grupo social a formas de violência, diretas, estruturais e culturais. E se, por um lado, estas pessoas sofrem violência, por outro, elas articulam resistências pessoais e coletivas que constroem alternativas com vista a um futuro de maior igualdade sexual e de género. Neste sentido, este projeto propõe-se a tratar essas resistências através da lente da utopia real, que é um conceito desenvolvido pelo sociólogo Erik Olin Wright. As utopias reais são propostas utópicas ancoradas em iniciativas concretas postas em prática na realidade e no presente, mas que procuram transformar o futuro. Gosto de pensar as utopias reais como fragmentos concretos de uma utopia abstrata, ideal e geral. Mas é através da acumulação destes fragmentos e da persistência deste tipo de iniciativas, de discursos, de práticas e de instituições utópicas que é possível construir alternativas e transformar o futuro. Por isso, o objetivo principal do projeto é explorar o que são as utopias reais queer, queer no sentido de se oporem e procurarem transformar o sistema heterocisnormativo, que basicamente é o conjunto de discursos e de instituições que mantêm a heterossexualidade, o cisgenderismo e o sexo binário como as normas para enquadrar o sexo, o género e a sexualidade em sociedade.

Quais foram as motivações para escolheres este tema?

A vontade de compreender a discriminação e as desigualdades que as pessoas sofrem em função da sua não normatividade – por serem LGBTQIA+, por serem mulheres, por serem pessoas com diversidade funcional, por serem pobres, por serem de minorias étnicas, raciais ou religiosas – foi sempre uma preocupação para mim. O interesse específico pela comunidade e pelos estudos queer surge, em primeiro lugar, como uma forma de me compreender a mim mesmo e de enquadrar a minha experiência pessoal na sociedade. E, depois, surge de uma vontade muito grande de promover mudanças ao nível da garantia dos direitos das pessoas LGBTQIA+ numa perspetiva também de ativismo.

O meu encontro com os estudos queer surgiu assim que entrei na universidade, quase de imediato, à medida que fui contactando com o trabalho que se faz no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nesta área, que é um trabalho excelente e que influenciou muito a minha trajetória. Tanto durante a licenciatura em Sociologia como durante o mestrado em Relações Internacionais, houve sempre espaço para explorar este tema. Esta abertura é algo que identifico como muito positivo por parte dos departamentos da faculdade e das e dos docentes, porque sei que não é generalizado no contexto académico, onde existe ainda alguma desconfiança sobre esta área. O meu projeto de mestrado surge neste caminho de mais de cinco anos a estudar, a investigar e a procurar aprofundar questões na área dos estudos queer e surge, por isso, de uma forma muito natural.

Que novos entendimentos pretendes traçar com este projeto?

Estamos em 2022, ano em que Portugal celebra 40 anos da despenalização da homossexualidade no país. E, por isso, o nosso acesso à história das pessoas LGBTQIA+ é muito recente. No nosso país, os estudos gays, lésbicos e queer têm vindo a afirmar-se e tem vindo a ser feito um trabalho excelente neste campo, nomeadamente na Universidade de Coimbra. Este campo de estudos tem-se focado muito no diagnóstico de problemas e na proposta de soluções concretas, nomeadamente a nível da legislação e das políticas públicas e sempre em articulação com os movimentos sociais, com as organizações e com ativistas no terreno. E tudo isto tem contribuído para as melhorias significativas a que temos assistido em Portugal nesta matéria.

Acredito que a ciência pode e deve ser emancipatória e fazer parte da resistência e do impulso de transformação social. E, por isso, o que procuro trazer com esta dissertação é, sobretudo, a visão de uma teoria, mas também uma política de esperança, focada nos indícios de que é possível construir um mundo melhor, não apenas para as pessoas queer, mas para todas as pessoas. E esses indícios acabei por encontrar nas histórias das pessoas queer, com as quais tive a oportunidade de trabalhar ao longo deste projeto, que de forma muito generosa foram partilhando comigo as suas experiências e vivências. Perante tudo isto, o que o projeto procura é, sobretudo, abrir portas a discussões do ponto de vista de uma investigação queer e das pessoas queer.

Quais são as principais técnicas de pesquisa que utilizas?

O projeto tem uma ancoragem teórica muito forte nos estudos queer em relação com a sociologia e as relações internacionais. E dentro das relações internacionais, tem um contacto particular com os estudos da paz e das violências. Implicou também um contacto com a realidade concreta, nomeadamente na abordagem a utopias reais específicas. Neste âmbito, foram analisadas três utopias reais queer, em três níveis diferentes: micro, meso e macro. No nível micro, são analisadas as identificações e as performances de pessoas queer; ao nível meso, é analisada a experiência do bairro queer, nomeadamente o Bairro da Chueca, em Madrid; e no nível macro são analisados os direitos humanos queer, de uma forma crítica e refletindo sobre a forma como os direitos humanos abrangem ou não a diversidade de pessoas queer.

O projeto é ancorado numa metodologia qualitativa com objetivos exploratórios. Foram realizados três estudos de caso, em cada um dos níveis de análise, e cada estudo de caso implicou um desenho de pesquisa específica e aplicado ao caso concreto. No que diz respeito às técnicas de recolha e de análise de dados, são qualitativas e incluíram a realização de entrevistas semiestruturadas, com pessoas que se identificam como queer, e, neste âmbito, o processo de amostragem procurou incluir a diversidade que o queer pressupõe, incluindo pessoas não binárias, género fluído, drag queens, pessoas pansexuais, entre outras identificações. Optei também pela observação participante e pela realização de entrevistas no Bairro da Chueca. E recorri também à análise documental, mais concretamente na abordagem aos direitos humanos.

Quais são os maiores desafios do processo de construção de um projeto de investigação de mestrado?

Quando me colocam uma questão sobre os desafios do mestrado, acho importante começar por abordar a dimensão mais material: em Portugal estudar no ensino superior ainda é um privilégio. As dificuldades económicas e as propinas ainda constituem um grande entrave à prossecução dos estudos e à obtenção de bons resultados por parte das e dos estudantes, mas, sobretudo, por parte de estudantes que vêm de contexto com menos possibilidades económicas, como é o meu caso. E, por isso, temos, muitas vezes, que conciliar os estudos com outros trabalhos, por vezes em situações de grande precariedade. No meu caso, tive a oportunidade e a sorte de trabalhar num projeto de investigação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o projeto TIMES, ao longo dos últimos anos, que foi um trabalho que me realizou muito profissional e pessoalmente.

Em termos académicos e do trabalho de investigação, acho que o mestrado é um momento de consolidação de conhecimentos, mas também é um primeiro encontro com a investigação de uma forma mais sistemática. E isso é muito desafiante! É um processo cheio de incertezas, de alterações, que exige flexibilidade e que é muito solitário. Com a pandemia de COVID-19 surgiram também novas ansiedades e foi necessário encontrar mecanismos e um equilíbrio, nomeadamente para lidar com a imprevisibilidade do trabalho de campo durante o período pandémico.

Quando ingressaste no ensino superior, imaginaste que seria este o teu percurso académico?

Quando entrei na universidade tinha dúvidas se seria capaz de terminar a licenciatura e fazer todas as disciplinas. Isto porque o ensino secundário tinha destruído por completo a minha autoestima neste sentido. Por isso, não imaginava que pudesse vir a ser um bom aluno e muito menos seguir um percurso na investigação. Mas decidi vir para Coimbra estudar Sociologia, porque queria compreender como é que a sociedade funciona e como, muitas vezes, funciona de formas tão injustas e desiguais. Hoje estou muito grato por ter percorrido este caminho, onde tenho vindo a encontrar essas respostas, num percurso que se foi construindo ao longo de toda a experiência académica, durante a licenciatura em Sociologia, durante o Erasmus, durante o mestrado em Relações Internacionais - Estudos da Paz, Segurança e Desenvolvimento, nos estágios e trabalhos que foram surgindo, nomeadamente em investigação. Na investigação científica encontrei algo que gosto muito, que me dá muito prazer, e que espero poder continuar a fazer. E foi assim que se foi construindo o meu caminho na investigação, algo que não imaginava que fosse acontecer quando cheguei à universidade.

Gostarias de partilhar algumas dicas com as/os estudantes que estão também a desenvolver um projeto de mestrado?

A minha dica pode ser um bocadinho “perigosa”, mas diria para não largarem as suas próprias ideias, por muito utópicas que possam parecer no início. Agarrem-nas, cuidem delas e não desistam delas. Confiem sempre nas vossas professoras e nos vossos professores, nas orientadoras e nos orientadores, porque vão ser pessoas excecionais no vosso caminho. No meu percurso, cruzei-me com pessoas que o mudaram por completo, tanto ao nível da minha trajetória académica como de vida.

Aproveitem o acesso que têm à Universidade, encarem esse acesso como um privilégio, que não está disponível a todas as pessoas. Tentem tirar o maior partido possível desta oportunidade, agarrem as oportunidades que forem aparecendo com humildade e com dedicação. Sejam solidários com as e os colegas, pois acredito que o conhecimento deve ser um esforço colaborativo e, por isso, serve de muito pouco entrar em lógicas competitivas ainda que, muitas vezes, o sistema educativo promova esse tipo de lógicas.

Quanto ao desenvolvimento de uma investigação, é um processo complexo, cheio de inseguranças e de imprevistos que se vão gerindo ao longo do processo. Mas acredito que destes imprevistos surgem sempre novas aprendizagens, que fazem parte do caminho. Por isso, não podemos desesperar. Por último, nunca se esqueçam que existe uma pessoa para além da tese e da universidade. E é sempre muito importante manter essa pessoa saudável e feliz!

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Fotografia: Paulo Amaral, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 31.01.2022