/ Como se Desenha uma Investigação

À procura de evidências para perceber como é vivido o estigma associado à doença mental na sociedade portuguesa

O doutoramento surgiu no caminho de Carolina Cabaços como uma forma de encontrar novas respostas para mitigar a problemática do estigma em relação à doença mental em Portugal. E o projeto foi crescendo com a missão mais abrangente de querer mudar a forma como a sociedade, e também as instituições, olham e integram pessoas com problemas de saúde mental. O projeto de investigação da estudante do doutoramento em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra intitula-se Mental illness related stigma: psychosocial and neural correlates and predictors é orientado por António Macedo, Miguel Castelo-Branco e Ana Telma Pereira e vai colher informações sobre o estigma em relação à doença mental junto de pessoas com diagnóstico de doença mental e junto da população geral, para perceber como olham para os outros e também para si próprios.

Qual é o objetivo do teu projeto de investigação?

O objetivo principal do meu projeto é compreender quais é que são os correlatos e os preditores, aquilo que está presente na mente das pessoas quando falamos deste problema importante e de saúde pública que é o estigma. Do ponto de vista neurobiológico, nomeadamente dos correlatos de ativação neuronal, procuro saber o que é que acontece quando nós ativamos as nossas crenças mais enraizadas dirigidas a este target que são as pessoas com doença mental. Para além de compreender isto, o segundo objetivo do projeto passa por perceber, do ponto de vista do doente, quais é que são as consequências a nível clínico, psicológico e funcional de sentir na pele, de internalizar, esse estigma. Para dar resposta a estes dois objetivos, o projeto tem dois estudos diferentes: o primeiro envolve indivíduos da população geral; e o segundo envolve pessoas com doença mental. Os estudos têm desenhos de pesquisa diferentes, mas convergem nestes dois grandes objetivos.

O que vais procurar descobrir junto da população geral?

No estudo que envolve a população geral, vamos tentar compreender quais são as crenças mais implícitas das pessoas, aquilo que elas nem sabem que sentem em relação a pessoas com doença mental. E vamos procurar perceber, a nível cerebral, se as áreas que se ativam são aquelas mais associadas a emoções de nojo e repulsa ou as que estão mais associadas à empatia e à teoria da mente, ou seja, compreender e detetar os estados mentais dos outros. No fundo, vamos procurar identificar o que as pessoas sentem quando olham para alguém que consideram diferente delas próprias.

E o que vais procurar desvendar juntos de pessoas com doença mental?

Do ponto de vista da amostra clínica, vamos avaliar três grupos de doentes com três tipos diferentes de doença mental: o primeiro grupo com perturbação obsessivo-compulsiva; o segundo grupo com perturbações depressivas; e o terceiro grupo com perturbações psicóticas, nomeadamente esquizofrenia e perturbações aparentadas. Nestes três grupos, os doentes vão ser avaliados em vários momentos durante um ano e meio, com instrumentos de avaliação de estigma. Vamos procurar perceber como é que eles têm sentido o estigma por ter uma doença mental (por exemplo, em que níveis da sua vida isso tem impacto, se foram prejudicados no trabalho, se foram tratados de forma diferentes nas relações, etc.). Vão também ser avaliados com recursos a instrumentos que analisam possíveis correlatos e outcomes, nomeadamente a adesão à medicação, a funcionalidade, a qualidade de vida, a autoestima, entre outros parâmetros. No fundo, vamos tentar diferenciar entre doentes que têm elevado e baixo estigma internalizado e perceber se os resultados divergem ao longo do tempo.

Que impactos gostarias que o teu projeto de doutoramento viesse a ter do ponto de vista da sua aplicabilidade?

Há algum tempo que se fala em estigma social associado à doença mental. E aquilo de que nos apercebemos é que, de facto, existe essa preocupação, mas não tem existido o estudo e a observação do fenómeno através da utilização do método científico, fazendo perguntas, colocando hipóteses, testando essas hipóteses e percebendo se estão ou não corretas e se nos aproximam ou não da verdade. E isto é uma lacuna.

Aquilo que tem acontecido é existirem grupos de pessoas dispersas pelo mundo que se preocupam com estas questões e com outras questões sociológicas, que têm vindo a desenhar intervenções, que envolvem muitos grupos populacionais, voluntários e pessoas com vontade de melhorar o mundo. Mas como não abordam o problema nas suas raízes e vão só à vertente mais comportamental – aquilo que é regulado por normas sociais –, acabam por abordar só a parte comportamental, corrigindo aquilo que se vê de fora: é feio tratar mal uma pessoa com doença mental ou fica feio eu chamar maluco ou louco a alguém, por exemplo. Mas apesar de as pessoas deixarem de ter estes comportamentos em virtude do que é socialmente aceite, será que a crença se modificou?

Neste contexto, o grande objetivo desta investigação é contribuir para o desenho de intervenções mais eficazes, porque as abordagens que referi anteriormente têm mostrado ser pouco eficazes. E o que se espera é que estas intervenções possam ser benéficas para a população em geral e para as pessoas com doença mental, e também, por exemplo, para os profissionais de saúde, porque também não estão isentos de sentir estigma.

Pensando de forma mais alargada, gostaria até que contribuísse para melhorar um bocadinho as políticas públicas de saúde e outras medidas sociais e institucionais que regem a vida destes doentes e que, muitas vezes, não lhes permitem ter acesso a trabalho protegido, a casas ou à autonomização. Muitas vezes, estas pessoas têm a capacidade de, do ponto de vista clínico, se emancipar da família, mas isso nem sempre lhes é permitido. E isso deve-se a um estigma mais estrutural. Uma política baseada na ciência pode mudar esta realidade. Este é o objetivo maior e mais profundo desta investigação de doutoramento.

Quais são as principais técnicas de pesquisa que vais utilizar no trabalho junto dos dois grupos de estudo?

No estudo da população geral, transversal, as técnicas de pesquisa são, essencialmente, a utilização de avaliação psicométrica, através de questionários de autopreenchimento, e também entrevistas estruturadas e semiestruturadas, aplicadas por psicólogos e outros profissionais que fazem parte da equipa de trabalho. Vai ser também usada uma técnica de neuroimagem – a ressonância magnética funcional –, que vai ser feita com o apoio do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS) da Universidade de Coimbra, para perceber os padrões de ativação neuronal quando estas pessoas são confrontadas com imagens e situações que potencialmente são gatilhos desse estigma.

O estudo dois, com pessoas com doença mental, é um estudo prospetivo, que decorre ao longo de um período durante o qual vamos aplicar questionários em vários momentos.

Sempre pensaste seguir o teu percurso profissional na área da Psiquiatria?

O meu caminho até chegar à Psiquiatria foi um bocadinho conturbado. Eventualmente, cheguei até a ponderar não ser médica, porque sempre tive também outros interesses. Até perceber o que queria fazer e em que área me queria especializar, andei um pouco perdida. No quarto ano do mestrado integrado em Medicina, descobri a Psiquiatria. Parece que apareceu uma luz! Descobri a Psiquiatria, decidi o que queria fazer e até hoje não houve um segundo da minha vida em que me tivesse arrependido.

E como surge a possibilidade de fazer um doutoramento?

Essa possibilidade nunca tinha surgido até há bem pouco tempo. Acho que até nem sabia bem o que era fazer um doutoramento! Quando escolhi Psiquiatria, nunca tive a ideia de me doutorar. Para mim, o doutoramento não é um fim em si mesmo, mas antes um meio para atingir os objetivos sobre os quais temos estado a conversar. Dá-me as ferramentas, a oportunidade, o tempo, eventualmente o financiamento, a equipa, os recursos, os orientadores e o seu expertise para ter a oportunidade de explorar estas questões e satisfazer esta necessidade de ajudar a mitigar a problemática que é o estigma em relação à doença mental.

Decidi doutorar-me depois de perceber que o meu interesse por este tema era muito, muito grande. Senti que tinha de fazer uma investigação mais profunda e o doutoramento pareceu-me a forma certa de o fazer. Além disso, a experiência académica enquanto assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra também me fez perceber que esta vertente também será algo muito importante na minha vida, aliada à parte clínica. E, portanto, doutorar-me e continuar a fazer parte desta casa que é a Universidade de Coimbra faz todo o sentido para mim.

Quais é que têm sido os maiores desafios do processo de construção do projeto de investigação de doutoramento, tendo em conta que concilias este caminho com a prática clínica?

O meu caminho começou há pouco tempo. Mas o que foi mais desafiante até agora, sobretudo no ano curricular, foi a gestão do tempo e das prioridades. Antes de ser qualquer outra coisa, eu sou clínica, vejo doentes e quero vê-los bem. E isso absorve-me do ponto de vista do tempo, mas também do ponto de vista emocional. Por isso, gerir a agenda semanal e perceber quando é que vou fazer cada uma das tarefas que tenho planeadas para o doutoramento (até mesmo a participação nas unidades curriculares) foi o mais desafiante até agora.

Dado que estás numa fase inicial do doutoramento, o que é que mais te inquieta quando pensas no caminho que ainda falta percorrer?

Não gosto de pensar muito à frente, nunca gostei. Mas relativamente à implementação do projeto de investigação, sei que vou deparar-me com um problema logo à partida: o recrutamento da amostra. Talvez essa seja a parte que mais me assusta. Quando terminar isso, certamente que o tratamento de dados ou deparar-me com a minha própria ignorância (isso acontece imensas vezes e ainda bem!) me vão assustar. Mas tudo isto é também muito entusiasmante, por isso uma coisa acaba por compensar a outra!

Que mensagem gostarias de deixar a pessoas que equacionam fazer um doutoramento, mas que, de certa forma, têm receio de dar esse passo?

Muitas vezes, colegas meus e pessoas que admiro muito, nas quais identifico muitas capacidades do ponto de vista científico e pessoal, dizem que não querem fazer um doutoramento porque “não é para eles” e sentem que não têm capacidade, força ou disponibilidade para isso. Penso que devemos fazer o raciocínio ao contrário: o doutoramento não vai ser a melhor coisa que vamos fazer na nossa vida, não vai ser o melhor projeto de sempre, não é o “fim”, mas sim o meio para lá chegar e, possivelmente, o início de uma nova etapa. Se quisermos fazer ciência que tem potencial para mudar o mundo e se acreditamos mesmo que podemos ajudar a solucionar um determinado problema, mais vale lançarmo-nos ao mundo e fazer isso. Há pessoas que procuram este tipo de formação pelas razões erradas (por exemplo, obter estatuto ou simplesmente ter um grau). Quem tem o coração no sítio certo para fazer ciência e, com ela, melhorar o mundo, já tem as bases, se tiver vontade, para fazer um doutoramento.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Fotografia: Paulo Amaral, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 30.09.2022