/ Caminhos na UC

Episódio #8 com Ana Maria Bandeira

Há 38 anos a viver a paixão de tratar documentos para conhecer as histórias do passado

São 38 de anos de profissão passados nos 10 quilómetros de documentação que existem no Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC). O fascínio de Ana Maria Bandeira pela documentação antiga surgiu na infância, quando encontrava exemplares na casa dos avós, e nunca parou de crescer. Para a técnica superior de Arquivo da Universidade de Coimbra (UC), os documentos são cápsulas do tempo, onde se estabelecem diálogos para saber um pouco mais sobre quem os escreveu. Muitos desafios marcaram o seu percurso, mas vive e fala com entusiasmo sobre a profissão que escolheu, não apenas pelos detalhes do passado que desvenda na sua rotina de trabalho, como também pelo apoio que presta a quem procura saber mais sobre as suas raízes.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso começou primeiro como aluna. Ingressei na Universidade em 1976 e foi aqui que fiz a minha formação académica. Frequentei a licenciatura em História e, na altura, surgiu uma reforma de estudos que permitiu que uma licenciatura com a duração de 5 anos pudesse ser feita em 4 anos e optei pelos 4 anos. A seguir a esses 4 anos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fiz o que na altura se chamava de Curso de Bibliotecário-Arquivista, que nos dava formação para podermos vir a trabalhar em bibliotecas e arquivos. O curso tinha a duração de 2 anos e seguia-se depois meio ano a tempo integral ou um ano a tempo parcial de estágio numa instituição. Acabei por escolher fazer um ano a tempo parcial, porque na altura estava a lecionar, em Penacova. Nessa altura, trabalhava de manhã na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, onde realizei o meu estágio, e depois ia durante a tarde para a escola. Só mais tarde, em 1983, é que entrei aqui no Arquivo da Universidade de Coimbra como técnica superior de Arquivo.

Por que escolheu trabalhar no Arquivo da UC?

Primeiro porque fui adquirindo formação para poder ingressar numa biblioteca ou num arquivo, porque me seduzia o trabalho nestes lugares, embora gostasse bastante de lecionar. Foi talvez até uma razão prática que me levou a abandonar o ensino, razão prática no sentido em que tinha que andar sempre na estrada e era muito cansativo. E optei por vir para o Arquivo porque me foi colocada essa hipótese e sempre gostei de trabalhar com documentação. Em criança, quando encontrava em casa dos meus avós documentação manuscrita e livros antigos, era um mundo para o qual sentia um certo apelo e não estou arrependida pela opção que fiz.

Para quem não está familiarizado com esta área de trabalho, o que faz um/a arquivista?

Depende da instituição, porque há arquivos muito diferentes: por exemplo, há arquivos institucionais de ministérios com documentação contemporânea e atual, há arquivos de universidades, há arquivos distritais. O Arquivo da Universidade de Coimbra reúne em si condições muito atrativas, muito apelativas para quem adore a profissão, para quem goste do trabalho como arquivista, porque é não só o Arquivo da Universidade, como é também o Arquivo Distrital de Coimbra. E tem uma grande diversidade de fundos documentais, tem mais de 500 fundos documentais. Em termos arquivísticos, um fundo documental é um acervo que provém de uma instituição. E, portanto, estão aqui representadas mais de 500 instituições, em 10 quilómetros de estantes que temos nos depósitos.

Quanto ao trabalho do arquivista, em primeiro lugar passa por descrever e tratar arquivisticamente a documentação: compreender o contexto em que foi produzida, organizá-la segundo regras arquivísticas internacionais que estão adotadas e que são divulgadas pelo Conselho Internacional de Arquivos. A par desse tratamento documental, há ainda a difusão da informação, de dar a conhecer a documentação, do que extraímos desses documentos. E essa divulgação pode ser feita com trabalhos que publicamos, através do nosso website, com exposições documentais que fazemos, com organização de workshops e de encontros que fazemos aqui no Arquivo. Depois há o trabalho quotidiano, ao qual não fugimos, que passa por receber pedidos de informação e dar respostas. Como somos também um arquivo distrital, temos também que fazer emissão de certidões que são necessárias para a vida diária das pessoas, porque temos um acervo de documentação notarial, judicial, registo civil e paroquial. E as pessoas recorrem a nós precisamente para obter cópias certificadas de documentação. É dada resposta, por exemplo, a situações de pedidos de dupla nacionalidade. Recebemos quase diariamente pedidos de pessoas provenientes do Brasil que querem ter também cidadania portuguesa, porque os seus avós eram portugueses. E é preciso prestar esses serviços e fornecer os documentos certificados. O mesmo se passa com a documentação notarial, quando alguém precisa de fazer prova legal, por exemplo, da posse de uma propriedade ou de uma escritura de sociedade. Fazemos também o acolhimento de leitores, na sala de leitura. É um trabalho muito diversificado!

O que é que torna este trabalho tão entusiasmante?

Para mim é entusiasmante porque adoro o que faço e porque gosto do contacto com a documentação. Inicialmente, quando comecei este trabalho quotidiano – depois de deixar o ensino, o burburinho da escola e o contacto com os alunos – senti que havia um silêncio pesadíssimo e um isolamento. Há um isolamento muito grande neste trabalho, porque é só quase o nosso contacto diário com o documento, o nosso diálogo com o documento, durante o tratamento documental. Mas há também o contacto com o público, com os colegas e com outras instituições.

Uma pessoa que não tenha formação base na área da História, como é o meu caso, pode não sentir este apelo, este interesse. A mim fascina-me a descoberta do passado, a possibilidade de conhecer aquilo que nos antecedeu, o sentido de responsabilidade de preservar a documentação e de garantir que ela chega às gerações que nos sucedem e também a oportunidade de perceber o que é o tempo na nossa vida. Ao trabalharmos com documentação de períodos cronológicos tão diversos, nós ficamos no meio de tudo isso, é como se entrássemos em bolhas de tempo, em cápsulas de tempo, porque trabalhamos com documentação de vários séculos - XVI, XVII, XVIII, XIX, XX - e de diversas instituições. E esta profissão leva-nos a conhecer o passado e permite-nos conhecer a riqueza do património arquivístico que temos e a importância que ele tem para trabalhos de investigação.

Entrei no AUC no dia 14 de outubro de 1983, vou fazer tantos anos de casa e não me sinto cansada daquilo que faço. Há sempre uma motivação diária: posso ter um contacto novo com alguém, posso ir ajudar alguém na sua pesquisa, posso encontrar documentação e fazer também os meus próprios trabalhos de investigação, porque também gosto de os fazer. Por tudo isto, não me canso da profissão.

O que é que pode contar um objeto com muitos anos de vida? Que histórias pode desvendar?

Podemos descobrir tanta coisa! Mas para isso temos que saber observar e como extrair informações, porque não é só o nosso contacto com o objeto que nos vai dar essas informações. Temos que saber interrogá-lo, saber conhecê-lo, saber compreendê-lo. As nossas peças documentais contam-nos muito, porque se as lermos dão-nos o testemunho de quem as escreveu e o conteúdo do que está ali escrito. E o próprio documento também nos fala de outra forma, por exemplo, o próprio papel que serviu de suporte para a escrita – que papel é esse, onde foi fabricado. Nós podemos fazer estudos sobre as marcas de água que estão no papel, que é um tema ao qual também me dedico e que gosto. A própria marca de água pode ajudar-nos a datar um documento que não está datado (por não estar, por exemplo, completo e não se encontrar a datação), porque através da marca de água nós podemos situá-lo no tempo – num espaço cronológico limitado, claro – e podemos, assim, identificar a data em que o documento foi escrito. Um documento transmite-nos muito sobre a pessoa que o escreveu, sobre o período em que foi escrito e sobre o contexto em que foi escrito.

Dando um exemplo destas descobertas, há uns anos tive a felicidade de encontrar umas cartas do irmão de D. Francisco de Lemos aqui no Arquivo. As gerações anteriores a mim souberam que elas existiram, mas não foram tratadas nem divulgadas. Tive a felicidade de encontrar as cartas do Dr. João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, irmão de D. Francisco de Lemos, que era desembargador em Lisboa, que também foi guarda-mor da Torre do Tombo, que teve diversos cargos. E aquelas cartas são fantásticas, é a tal cápsula do tempo que referi anteriormente, porque nos revelam a relação entre dois irmãos, a afetividade que havia entre eles que nós não pensámos que pudesse existir entre duas pessoas que ocupavam cargos tão elevados no Século XVIIII. Percebemos que o Dr. João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho se dirige ao D. Francisco de Lemos sempre iniciando as cartas com a expressão Mano muito do meu coração. Essas cartas dizem-nos tanto sobre as ligações familiares, sobre, de certa forma, os conselhos que eram dados, sobre como ajudava a resolver questões na Corte, relacionadas com a Universidade de Coimbra ou com o bispado, porque D. Francisco de Lemos foi Reitor e Bispo de Coimbra. Dou este exemplo da correspondência porque são objetos através dos quais descobrimos sobre as relações familiares e sobre a ligação afetuosa entre dois irmãos que ocuparam cargos relevantes. Há uma carta interessantíssima em que o irmão de D. Francisco de Lemos diz que o Marquês de Pombal tinha estado a ver as plantas da Universidade. E é como se ao lê-las estivéssemos a viver aqueles momentos e a construção dos edifícios pombalinos. Portanto, cada documento que abordamos, que lemos e que tratamos é uma riqueza informativa!

Desde que trabalha no Arquivo da Universidade de Coimbra, quais foram os momentos e projetos que ficaram registados na sua memória com maior intensidade?

Já são mais de três décadas de trabalho nesta instituição e, por isso, é muito difícil escolher apenas um. Mas posso referir aqueles que me tocaram mais, por ter aprendido bastante ao dedicar-me a essa documentação. A prova de que estamos sempre a aprender é, por exemplo, o trabalho sobre a correspondência entre Dr. João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho e o irmão D. Francisco de Lemos, que anteriormente referi, que foi feito há poucos anos. Foi um trabalho muito marcante! Ter trabalhado também a documentação do Hospital Real de Coimbra e do Hospital de São Lázaro foi também uma aprendizagem, uma aprendizagem do que eram aquelas instituições.

Depois há também trabalhos coletivos, que nos envolvem a todos, que também foram gratificantes, como por exemplo o levantamento da documentação dos arquivos municipais e dos registos paroquiais, que foi um projeto da Secretaria de Estado da Cultura. Esse levantamento, que envolveu a minha coordenação no distrito de Coimbra com pessoas que foram recrutadas para, no campo, irem aos municípios fazer esse levantamento, resultou em duas publicações que foram feitas para o distrito de Coimbra e outras publicações para todos os distritos do país. Há ainda outros exemplos, como quando colaborei com um colega da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e com o Museu da Ciência na organização da exposição Do sul ao sol: a Universidade de Coimbra e a China, dedicada às relações entre a UC e a China, nomeadamente através de testemunhos documentais que existem na Universidade. Destacaria ainda a exposição A Universidade e o Brasil, que foi marcante e da qual saiu também um catálogo que fica para sempre. Também é marcante a relação que vamos criando com os estagiários que chegam ao Arquivo, porque vemos que é uma nova geração de profissionais e nós estamos a ajudá-los a compreender o mundo deste trabalho. Tivemos também o processo de digitalização dos nossos registos paroquiais, através do qual foram digitalizados e disponibilizados online milhares de livros.

Não posso esquecer de mencionar certos momentos que nos dão uma gratificação profissional, mas também pessoal: que é podermos ajudar pessoas que acorrem a nós. Lembro-me de algumas pessoas que vêm ao Arquivo, que não têm noção do que devem procurar, mas que precisam de encontrar um documento comprovativo de algum momento. Por exemplo, há uma legislação que exige que se comprove a posse, em poder particular, de propriedades na margem dos rios e na margem costeira. Se não for feita prova dessa posse, os terrenos revertem para o Estado. O nosso papel é ajudar as pessoas a encontrar testemunhos documentais que comprovem que os terrenos estavam na posse das suas famílias, dos seus antepassados. E isso dá-nos uma certa tranquilidade, de sentirmos que fomos úteis para aquelas pessoas. Há outra história que também me marcou, que aconteceu há 5 anos. Um senhor recorreu ao Arquivo para tentar localizar o percurso académico do pai, que foi aluno de Direito, com quem não teve qualquer contacto familiar, por divergências familiares. Como o senhor reside fora de Portugal, a pesquisa não foi feita presencialmente e quando ele viu aqueles documentos que comprovavam a existência do pai, o facto de ter sido um bom aluno e de ter exercido a profissão, foi um momento muito gratificante para ele. Como a imagem que ele tinha do pai era diferente do que os documentos comprovaram, senti que houve ali um apaziguamento interior. Este momento teve tanta relevância, de tal forma que quando veio a Portugal esteve no Arquivo para me conhecer e para ver e tocar os documentos do pai. Foi também muito marcante! Outro exemplo que posso dar: há uns anos, fazíamos uma receção de turistas para um roteiro judaico, em que mostrávamos documentação relativa a Aristides de Sousa Mendes, o cônsul que ajudou a salvar tantas vidas, que estudou aqui em Coimbra. Além dessa documentação, era também mostrada documentação de judeus residentes no bairro da Judiaria em Coimbra e de várias personalidades que tinham ancestrais judaicos e que tiveram que sair de Portugal. Todas as pessoas que vinham aqui e que participavam nessa atividade que organizávamos para dar a conhecer esse breve roteiro documental judaico, ficavam muito agradecidas porque grande parte delas eram descendentes de portugueses que tinham saído do país. E essas pessoas tinham muito a necessidade de vir conhecer as suas raízes, as suas origens. E isso também foi tocante para mim, ao perceber como a documentação que viram os levava a apaziguarem-se com situações vividas pelos seus ancestrais. Alguns não esperavam ter a possibilidade de ver essa documentação e ficaram muito emocionados.

Que tipos de pessoas visitam o Arquivo da UC? O que procuram com maior regularidade?

Costumamos acolher escolas, em visitas de estudo. Na sala de leitura, acolhemos os leitores: desde investigadores, para trabalhos académicos (já acolhemos projetos interessantíssimos da área da Biologia, sobre fungos no papel e em pergaminhos, e também da área da Química, sobre selos de chumbo), até pessoas aposentadas, que gostam de se dedicar a ir ao encontro dos seus ancestrais e que vêm fazer aqui a pesquisa documental. Com a situação pandémica tivemos que reduzir a 1/3 o número de lugares na sala de leitura, mas há sempre quem recorra a nós através de um e-mail ou de um telefonema. Recebemos também alunos da UC, principalmente de cursos de História da Faculdade de Letras, porque os professores pedem que lhes seja mostrada documentação sobre as várias áreas de interesse e sobre as várias matérias que são lecionadas. Também promovemos workshops, que fazem com que passe pelo Arquivo outro público diferente, como por exemplo através das formações para guias turísticos da UC, ou para professores, que se inscrevem nas atividades que a Universidade de Coimbra organiza em várias áreas do saber.

Quais são os maiores desafios da sua profissão?

Hoje poderão achar isto estranho, mas quando aqui ingressei não trabalhávamos com computadores! E isto trouxe uma atualização nas formas de trabalhar. Antes disso nós registávamos a descrição documental em fichas e fazíamos índices que depois eram ordenados alfabeticamente. Imaginem como isto era moroso, trabalhoso e limitava um pouco a diversidade de trabalhos que poderíamos fazer. Hoje, um computador faz essas tarefas de organização de forma automática e isso permite-nos agilizar o nosso trabalho e fazer pesquisas de outra forma. Permite-nos também colocar a informação nas nossas plataformas informáticas para que fique disponível para todos. E os desafios foram estes: deparar-me com novas tecnologias e as novas aprendizagem que exigem e também conseguirmos reingressos de documentação, que é também outra das nossas tarefas. Há documentação que entra no Arquivo por obrigatoriedade legal, mas podemos fazer aquisições, caso se encontre documentação à venda que seja relevante, como foi, por exemplo, o caso do copiador de correspondência do Cardeal Saraiva que foi recentemente adquirido. Vamos em breve adquirir um manuscrito do Século XVII de uma irmandade aqui da zona de Vila Nova de Poiares. É também um desafio estar alerta para estas situações. Foi também um desafio viver uma pandemia quando se trabalha num arquivo e perceber como ultrapassar as limitações que foram impostas. Por isso, começámos a animar mais o nosso website e a fazer exposições virtuais. A própria manutenção do edifício é também um desafio. Este edifício tinha um sótão, que não estava a ser aproveitado, e foi lá construído mais um piso de gabinetes. Viver e trabalhar aqui diariamente com obras a decorrer não foi fácil. A falta de colaboradores que hoje temos é também um desafio, já fomos um corpo técnico mais alargado do que é hoje, e os desafios do que nos é pedido continuam a ser os mesmos ou são mais ainda. Os desafios nunca pararam de surgir!

Para terminar esta conversa, algum segredo ou alguma curiosidade sobre o Arquivo da UC, que não seja do conhecimento geral, que gostaria de partilhar com a comunidade UC?

Em 10 quilómetros de documentação há muitos segredos! Há muitos tesouros que já são conhecidos, como os Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra, de 1772. Temos aqui também o diário da visita do Marquês de Pombal a Coimbra, em 1772, quando veio fazer a entrega dos Estatutos. Não é uma raridade, porque a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra também tem outro diário, mas não sabemos qual é a cópia e qual é o original. Este documento foi feito pelo secretário da Universidade e nele estão descritos todos os dias da visita de Marquês de Pombal a Coimbra, o processo de entrega dos Estatutos e o cerimonial todo na Sala dos Capelos. Temos também o Livro Verde da Universidade e o diploma de D. Dinis que são peças basilares da riqueza do Arquivo. Depois há uma série de documentação que à partida pode não ter interesse, mas, se a formos ver com outros olhos, encontramos nela, de facto, importância.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado em 29.07.2021