/ Caminhos na UC

Episódio #57 com Susana Godinho

Há quase 30 anos a encarar com amor e sabedoria a missão de apoiar a confeção de refeições na Universidade de Coimbra

Publicado a 25.03.2024

Para Susana Godinho, amor e sabedoria são dois ingredientes invisíveis que, todos os dias, estão presentes nos milhares de refeições que são servidas à comunidade da Universidade de Coimbra (UC). Há cerca de 30 anos que trabalha nos Serviços de Ação Social da UC (SASUC). As quase três décadas ao serviço desta casa foram quase sempre passadas na área da alimentação. Na maioria do tempo esteve sempre no lado visível – muito deste tempo enquanto encarregada de uma cantina. Hoje em dia está no lado “invisível” – enquanto técnica superior do Núcleo de Apoio Transversal da Divisão de Alimentação. Foi com um sorriso no rosto e um grande sentimento de entrega e de pertença que nos recebeu no espaço que, durante tantos anos, foi o seu local de trabalho: a Cantina São Jerónimo, no Polo I. Durante a conversa, partilhou desafios, momentos de superação, e os seus estudos superiores. E abordou sempre o respeito e o orgulho por ter tido a possibilidade de trabalhar em conjunto com um dos grupos de pessoas que, todos os dias, garante que há comida para servir a estudantes, docentes, investigadores e membros do corpo técnico. Para Susana Godinho, o seu sucesso ao longo destes anos deve-se também ao grande espírito de missão e de equipa e aos laços que criou em mais de 30 anos com cozinheiros, operadores de caixa, copeiros e tantas outras pessoas que diariamente estão em serviço nas cantinas da Universidade de Coimbra.

Quando e como começou o seu percurso na UC?

O meu percurso na Universidade de Coimbra começou “à séria” há sensivelmente 30 anos, no Restaurante Universitário Sereia, que atualmente já não existe. E digo “à séria” porque sou filha de uma funcionária dos SASUC e, por isso, acabei por passar muito tempo nesta casa.

Entrei para ser operadora de caixa, mas fazia balcão, fazia limpeza, dava apoio à cozinha, porque já nessa altura apelavam muito à polivalência. E estive naquela casa durante cerca de 12 anos, sendo que os últimos já foram passados no escritório a ajudar o encarregado da cantina.

O meu percurso foi feito praticamente todo na área da alimentação. Houve apenas um interregno, quando concorri para assistente técnica e estive na creche dos SASUC, mas acabei por não me dar muito bem, porque senti falta de ver o público. Concorri então para encarregada operacional e voltei para as cantinas.

Como é a experiência de gerir uma cantina?

Gerir a cantina tem vários desafios. Por exemplo, a pessoa que está do lado de fora não tem a noção que o encarregado de qualquer unidade alimentar dos SASUC tem a responsabilidade de fazer todas as encomendas determinantes para o serviço. Os fósforos para acender o fogão, o detergente para limpar o chão, a comida que aparece nos pratos: tudo isto é da responsabilidade do encarregado. Temos também os imprevistos, como equipas reduzidas em determinado dia ou um equipamento que avaria, coisas que acontecem em qualquer local de trabalho.

Independentemente do que possa acontecer, a nossa missão é garantir que todo e qualquer utente vai ter sempre a refeição social disponível a tempo e horas e com qualidade. Essa é a missão de qualquer cantina. E, ao mesmo tempo, temos de garantir a diferença, porque o cliente também gosta de algo diferente. E diferente não é errado. E fazemos essa diferença também no prato social, porque temos opção para quem é ou gosta de vegetariano, para quem tem a necessidade de uma dieta, para quem procura algo para além da carne e do peixe.

Recentemente, mudou-se para um novo posto de trabalho, que está mais relacionado com tarefas em escritório. Como surge esta oportunidade?

A determinada altura, a UC criou o mestrado em Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade. E eu tive o privilégio de, aos 40 anos, mãe de dois filhos e a trabalhar como encarregada numa cantina, fazer este mestrado. Não foi fácil, mas fez-se.

Depois de ter o canudo, pensei: o que é que eu posso fazer com isto? Qual é a mais valia que posso trazer para os SASUC? Qual é a mais valia que posso trazer para a alimentação? E abriu um concurso de mobilidade intercarreiras, que me dava a possibilidade de concorrer para a carreira de técnica superior. E assim foi. Fui aprovada e passei para a carreira de técnica superior, no Núcleo de Apoio Transversal da Divisão de Alimentação dos SASUC, com a salvaguarda de que garantiria sempre o cargo e as funções de encarregada, conciliando com as funções de técnica superior.

Entretanto, o novo chefe da Divisão de Alimentação disse-me que estava na hora de largar o lado mais direto do trabalho na alimentação e apoiar mais outras áreas. E assim deixei o lado visível e passei para o lado invisível da alimentação dos SASUC. Confesso que sinto imensas saudades de estar aqui todos os dias, desta lufa-lufa. Mas estou do outro lado, onde também é preciso estar para, por exemplo, dar apoio aos nossos colegas que estão deste lado, para fazer orçamentos, para lidar com programas como o Programa de Apoio Social a Estudantes através de Atividades a Tempo Parcial (PASEP). Estou em efeito esponja, a absorver toda a informação relacionada com esta transição para passar à mudança definitiva para técnica superior.

Que tema é que trabalhou no mestrado?

“As plantas aromáticas na culinária dos séculos XVI e XVII: Um contributo para a história da alimentação” foi o tema da minha dissertação.

E por que decidiu trabalhar esse tema?

No âmbito de uma cadeira com a Professora Maria José Azevedo Santos, tivemos de fazer um trabalho prático, mas sem levar comida para a sala de aula. Fiquei a pensar como iria fazer um trabalho prático de alimentação sem levar comida e lembrei-me das ervas aromáticas, que gosto muito. Acabei por levar e estudar uma seleção de várias ervas – como salsa, coentros e lúcia-lima. Foi a partir deste trabalho que definimos que o tema seria ervas aromáticas. Há muito poucas fontes de ervas aromáticas. E assim foi, comecei a trabalhar o meu tema e a trazê-lo para os SASUC. E aos poucos vamos trazendo para a prática o que aprendi no mestrado.

Gostou da experiência de voltar a estudar após tantos anos?

Gostei. Mas entrei tremendamente amedrontada, porque sabia que ia ser difícil. Se é um grande desafio para um aluno que não tem mais responsabilidades, é ainda mais para uma pessoa do nosso universo, da nossa idade, com filhos, marido e casa para cuidar.

Mas agradeço à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra que me recebeu com uns braços gigantes. Cada vez que dizíamos que éramos funcionários dos SASUC, éramos recebidos de uma maneira extremamente calorosa. Na defesa da dissertação, o presidente de júri, o Professor Albano Figueiredo, disse isso mesmo, que era um prazer ter alguém dos SASUC a defender um projeto de mestrado. Fez-me sentir que somos mais valorizados do que pensamos. Temos um valor que às vezes menosprezamos. E somos capazes de mais, às vezes temos é de sair da nossa zona de conforto.

Voltando ao seu trabalho na Divisão de Alimentação dos SASUC, alguma vez pensou estar do lado de lá, na cozinha?

Cozinhar nunca foi uma possibilidade. Só mesmo dentro das minhas quatro paredes, com meia dúzia de pessoas! Tudo o que ultrapasse isso, já me faz entrar em parafuso.

Admiro e tiro o meu chapéu a quem consegue fazer arroz para 300 ou 400 pessoas, conseguindo que saia bem, soltinho e saboroso! Acho que as pessoas não têm noção do quão trabalhoso é estar numa cozinha; o quão penoso é estar agarrado aos tachos e às panelas; e a responsabilidade deste trabalho. E o meu sucesso como encarregada também o devo à equipa da cozinha.

Ouvir um cliente dizer “isto está ótimo!” é o melhor presente que se pode dar a qualquer elemento das cantinas dos SASUC. Esquecemos logo o dia de cão ou as filas gigantes, porque quando vemos as filas ficamos atrapalhados, pois queremos que os tempos de espera sejam limitados. Mas, ao mesmo tempo, ficamos felizes porque temos muita gente a procurar-nos, porque é por isso que cá estamos e sem esta gente toda nós não fazemos sentido.

Em média, quantas refeições são servidas diariamente na Cantina São Jerónimo?

Neste momento, conseguimos servir garantidamente 300 refeições sociais e 200 refeições snack. Aos poucos, estamos a reconquistar o cliente que durante a pandemia se afastou por estarmos fechados.

E quantas pessoas preparam e servem por dia estas refeições?

Em média, 10/11 pessoas, se não contarmos com o encarregado, que anda dentro e fora da cantina e ajuda. Na Cantina São Jerónimo, além das refeições que servimos neste espaço, são também preparadas as refeições para o bufete que é servido na Cafetaria Museu, para entre 80 a 100 pessoas, e também as cerca de 100 refeições que vão ser servidas no Bar da Faculdade de Letras.

O que mais marcou o seu percurso na UC até ao momento?

Diria que foi a mudança pessoal, antes do mestrado e depois do mestrado. A expetativa que eu criava e que eu passei a criar, porque comecei a pensar um bocadinho mais em grande: “Sou e somos capazes”. Aprendi a dizer mais vezes que somos capazes de assumir desafios. Porque quando chegamos ao fim e conseguimos é uma grande realização!

E dando um exemplo, durante a Universidade de Verão recebemos aqui muitos estudantes. E uma das meninas disse-me que era celíaca e que notou o cuidado que tivemos com a alimentação dela toda a semana. Ela foi embora a dizer que se entrasse na UC não iria comer a mais nenhuma cantina. No primeiro dia de aulas do ano letivo, recebo uma chamada a avisar para passar a contar com ela todos os dias aqui na cantina. Quando partilhei isto com a equipa, não imaginam a alegria que trouxe! Ficamos sempre muito satisfeitos quando alguém nos procura novamente, porque significa que estão a sentir-se em casa. E é para isso que trabalhamos, para que os nossos alunos, longe de casa, se sintam em casa.

E qual foi o maior desafio que enfrentou nestes quase 30 anos de serviço?

Penso que o meu maior desafio acaba por ser o maior desafio dos encarregados das outras unidades alimentares: motivar pessoas. Estamos a falar de pessoas que, todos os dias, têm tarefas árduas e duras. Ao contrário do que acontece num escritório, numa sala de aula, ou numa secretaria, em que há dias duros espalhados numa semana, aqui todos os dias são duros, para a senhora que está na caixa, para a senhora que está no balcão, para o cozinheiro, para a senhora que está a lavar os tachos. E um encarregado tem de motivar todos os dias estas pessoas, enquanto gere todos os imprevistos. “Malta, vamos respirar fundo, ao meio-dia vamos abrir a porta, e ninguém vai saber a manhã que aqui tivemos”, disse eu muitas vezes ao longo destes anos.

Por isso, o maior desafio é esse: motivar pessoas que trabalham muito e ganham pouco. Como sabem, os assistentes operacionais do nosso país ganham o ordenado mínimo. Trabalhar tanto para ter apenas o ordenado mínimo ao final do mês só é possível com um grande espírito de missão e de equipa. E incutir este espírito não se aprende nos livros; aprende-se no dia a dia, com o coração e com a razão. E tenho aprendido isso ao longo dos anos, com esta equipa que tanto, tanto me ensinou.

Como vê o futuro de uma área tão exigente como a da cozinha?

Não vai ser fácil. Os nossos jovens, mesmo os que frequentam escolas da área da hotelaria, assustam-se com o ordenado e com a exigência destas funções. O ser humano está cada vez mais exigente e trabalha para ter conforto e um bom ordenado.

Acho que cabe aos nossos governantes – não depende de mim, do meu chefe, do senhor Administrador ou do senhor Reitor – perceber que ou estas profissões de meter a mão na massa, de braços, de pernas, de andar o dia todo de pé são valorizadas ou qualquer dia estão em vias de extinção. Para termos boas pessoas a trabalhar, temos de as tratar bem. E, às vezes, os nossos governantes esquecem-se disso.

Se estas e outras áreas similares não evoluírem para que seja possível pagar melhores ordenados, e criar melhores condições, não vejo o futuro com bons olhos. Tem que haver uma restruturação no nosso país para validar e avaliar melhor estas profissões, porque, sem isso, não vamos ter gente para as desempenhar.

Que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC?

A minha estimada orientadora usava nas aulas uma frase do Padre António Vieira, que gosto muito: para ensinar, duas coisas há que ter, amor e sabedoria. Atrever-me-ia a dizer que precisamos de amor e sabedoria para quase tudo. Para alimentar também, não tenho dúvidas. Por isso, convido a nossa comunidade universitária a vir às nossas cantinas para comer as nossas refeições, que todos os dias, em todos os sítios, são feitas pelos meus colegas com muito amor e muita sabedoria.

Assista ao vídeo desta entrevista:

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM; Inês Coelho, DCOM; e Marta Costa, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Ana Bartolomeu, DCOM e Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR