/ Caminhos na UC

Episódio #54 com Ana Lucas

Há 25 anos a abraçar e a acolher estudantes na Universidade de Coimbra

Há 25 anos, Ana Lucas chegava à Universidade de Coimbra (UC) para acompanhar os estudantes residentes da Residência João Jacinto, uma das residências dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra (SASUC). Durante 12 anos, foi a funcionária residente, um desafio que acabou por se transformar na oportunidade de marcar a vida dos estudantes que acompanhou. Hoje, é responsável pela Residência João Jacinto, função que desempenha com orgulho e amor. Facilitar, ajudar, tolerar e cuidar são os verbos que mais se adequam ao percurso da Dona Ana, para quem os 132 estudantes que acompanha diariamente são parte da família. Uma família que, como tantas outras, precisa de se juntar para ultrapassar desafios, momentos em que a entreajuda permite enfrentar os obstáculos.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Começou em 1998, quando vim para a Residência João Jacinto, na altura como funcionária residente, todas as noites e todos os dias. A residência tinha alguns problemas – barulhos e atritos – e acharam que precisavam de alguém aqui para manter uma certa ordem. Os primeiros anos foram muito complicados, mas, ao fim de algum tempo, e com muito trabalho, consegui trazer um certo equilíbrio para a residência. E, ao fim de 12 anos, voltei para a minha casinha. Hoje trabalho em horário normal na residência.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar na UC?

Trabalhava em hotelaria. Alguém me informou sobre a vaga para a residência, fui a entrevista, gostaram do meu currículo e fiquei. E olhe, cá estou até hoje. Não foi fácil deixar a minha vida e a minha casa para vir morar aqui, assumindo a responsabilidade de cuidar de uma residência em que viviam 132 rapazes, e ter sempre força e estaleca para enfrentar os dias.

Como foi a experiência de ser funcionária interna na residência?

Foi difícil. Custou-me muito viver 12 anos em permanência na residência, e também ao meu filho e, mais tarde, ao meu marido, que se juntou a nós. Mas tive muita força e muito apoio da minha família. Na altura, quem aqui vivia não me queria cá, porque era alguém que os vinha controlar. Mas, no final, quando deixei de ser interna, tive o reverso da moeda e acabei por ouvir “Por favor, Dona Ana, não vá, fique cá!”. E aí percebi que valeu a pena o esforço. Conseguimos passar a ter um ambiente mais saudável, com mais qualidade, tanto para viverem em conjunto, como para terem sucesso académico.

Em 2011, surgiu o convite para chefiar a Divisão de Planeamento, Gestão e Desenvolvimento, divisão que ainda hoje existe na atual estrutura da Administração. Fui chefe desta divisão durante 11 anos. Em 2023, com a reestruturação da Administração da UC, foi criado o Serviço de Apoio à Gestão, tendo surgido a oportunidade para ser diretor de serviço, função que desempenho atualmente.

De forma muito resumida, este foi o meu percurso ao longo de mais de 20 anos na Universidade de Coimbra.

Falando do seu trabalho atual enquanto responsável pela Residência João Jacinto, como é a sua rotina de trabalho?

Aqui não existem dias iguais, por isso, não há monotonia. Posso começar por fazer uma limpeza neste bloco, mas, passado pouco tempo, chamarem-me porque precisam de mim noutro espaço da residência. Tanto faço limpezas, como mil e uma coisas. Há sempre muitas coisas para fazer! E no dia a dia vou tentando facilitar a vida de quem cá vive. Se não fosse para facilitar a vida dos estudantes, também não estaria aqui a fazer nada. Em conjunto, vamos mantendo sempre a casa limpa e arrumada.

E além de cuidar da casa, de que outra forma ajuda as/os estudantes no dia a dia?

Por exemplo, às vezes até um telefonema de uma mãe atendo, quando não conseguem falar com o filho, porque deixou o telefone desligado. Ou, às vezes, uma assistente social precisa de falar com uma pessoa que não atende o telefone, e lá vou eu avisar. E outras coisas, como acompanhar as intervenções que são feitas (arranjar uma torneira ou uma persiana). Há sempre muitas formas de ajudar.

Sente-se um membro da família das/os estudantes que vivem aqui?

Sim. Aquela menina que estava ao fundo das escadas quando chegaram para a entrevista diz que sou a mãe dela cá. É um bocadinho isso que sinto. Somos a família deles, principalmente dos que só vão a casa nas férias. E estou sempre pronta quando me querem dar um abracinho, porque sei que esse carinho é importante. Também já me deram abraços, nas vezes em que estive mais em baixo, porque nem sempre estamos bem. Sabe bem receber esses abracinhos.

O que mais gosta no seu trabalho?

A parte humanitária, de ajudar com as relações entre as pessoas. Tento sempre ouvir todos os estudantes, sejam rapazes ou raparigas, para tentar ajudar a resolver as situações. Dá-me gosto quando consigo ajudar a um entendimento. É aí que me sinto mesmo bem. E gosto de fazer de tudo um pouco. Mas ajudar a que se entendam é a parte mais compensatória a nível pessoal.

Equilibrar a relação entre os residentes é o mais desafiante do seu trabalho?

Sim. Há pessoas de culturas diferentes e é preciso perceber como se vão dizer as coisas sem que ninguém se ofenda. Às vezes, as pessoas ficam muito fragilizadas porque as coisas não correm bem, porque o estudo não correu bem, e é preciso ter um bocadinho de compaixão, de equilíbrio, de paciência, muita paciência. E em situações em que não se entendem, digo-lhes sempre: “esta é a vossa casa, respeitem para serem respeitados”. E temos conseguido esse equilíbrio entre todos.

O que mais marcou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Há muitos anos, veio um grupo grande de timorenses. E para alguns deles – como o Hélio, que se formou e fez mestrado, sempre muito esforçado e focado – correu tudo muito bem. Mas para outros as coisas não correram tão bem, e custou muito vê-los, ano após ano, a não conseguirem e a terem de desistir. As bases que traziam eram muito fracas para a exigência dos cursos. Na altura, um desses alunos disse-me: “Não estou a conseguir, vou-me embora”. Tive muita pena, porque era mais velho, já tinha filhos, e era uma joia de pessoa. Custou-me porque ele estava a esforçar-se muito e não conseguiu terminar o curso. Alguns estudantes chegavam cá com bastantes dificuldades e, na altura, como vivia na residência, cheguei a levar pratos de comida a alguns quartos. Marcou-me sempre muito ver pessoas a desistir porque não tinham possibilidades para continuar a estudar.

Marcou-me muito também o Elton, um invisual, uma história longa que vou tentar resumir. Deixaram-no aqui num táxi. Na altura, a minha chefe pediu-me para o receber um bocadinho mais tarde porque estava atrasado. Quando chegou, vinha só com uma mala, não trazia bengala, e as pessoas que vinham com ele saíram assim que o deixaram. Fiquei eu a acompanhá-lo quando percebi que não vinha com ninguém para lhe dar esse apoio. E percebi que tínhamos de ser nós na UC a ajudá-lo. Lembro-me de subir as escadas para ir à sala perguntar quem ia jantar às cantinas para que o pudessem acompanhar. Os estudantes disseram logo: “Não se preocupe Dona Ana, nós vamos tratar dele”. Sei que nesse dia não foram jantar às cantinas, mas fizeram o jantar e ele jantou com eles. Nos dias seguintes, até ele se ambientar, o meu marido ajudou-me a levá-lo às aulas. Trouxe-lhe loiça, trouxe-lhe um guarda-chuva, porque ele não tinha nada. Fui com ele conhecer as salas de aula. E começámos todos a ajudá-lo, até que a ACAPO [Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal] começou a ensiná-lo a andar sozinho, porque ele nem sequer tinha bengala e não sabia andar sozinho. Nesta situação, todos juntos fomos ação social, fomos muito ação social! E ele conseguiu fazer o curso até ao fim, voltou para Moçambique e está bem.

Que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC?

Viver numa residência, apesar de ser para bolseiros e de acharem que se calhar não vivem tão bem – mas vivem! –, traz-lhes estaleca para a vida. Prepara-os para a vida de uma maneira diferente, para que fiquem preparados para fazer de tudo um pouco (tratar da higiene da casa, organizem-se…). E dá-lhes amizades para a vida. São muitos a viver na mesma casa, têm de conviver, de saber partilhar e tolerar. Acho que viver na residência prepara-os muito bem para a vida. Digo muitas vezes que viver na residência tem sempre alguma vantagem, nem que seja no dia em que estão com febre e têm o colega de quarto para ir à farmácia buscar medicamentos; ter alguém que lhes faça o chá à noite. Às vezes estas coisas não parecem muito importantes, mas são.

Assista ao vídeo desta entrevista:

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM, Inês Coelho, DCOM, Marta Costa, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Ana Bartolomeu, DCOM e Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 26.10.2023