/ Caminhos na UC

Episódio #43 com Joana Coelho

Trabalhar diariamente com a doação de corpos em prol do avanço da ciência

O percurso de Joana Coelho na Universidade de Coimbra começa em 2007, num curso que não era exatamente o seu sonho, mas antes a área que mais certezas profissionais trazia na altura. Mas a vida acabou por colocar o seu sonho no caminho, quando ingressou na licenciatura em Antropologia na nossa Universidade. Seguiu-se o mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses e a missão de tratar um corpo morto com o mesmo respeito que deve ter durante a vida ganhou novas formas. Hoje é técnica superior do Instituto de Anatomia Normal da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde trata da preservação e do manuseamento de corpos que, após a morte, são doados para fins de ensino e investigação. É este desígnio de contribuir para o avanço da ciência, a par do respeito pela vontade de quem partiu, que orienta, todos os dias, a rotina de alguém que lida diariamente com a morte.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso na Universidade de Coimbra começou em 2007. O meu primeiro ano na UC foi na licenciatura de Comunicações e Multimédia, um curso que não era, de todo, aquilo que queria, mas que – pensava eu – me daria mais oportunidades a nível profissional.

Por sorte, ou por azar, como que um sinal do Universo, esse curso acabou nesse ano, devido ao Processo de Bolonha, e tivemos de mudar de curso, ou para Engenharia Informática ou para um novo curso que iria abrir. E foi aí que decidi que, já que tinha de mudar de curso, iria para o curso que eu já desejava desde o ensino secundário – Antropologia.

E como é que surge o interesse pela área de formação em Antropologia?

No ensino secundário, naquela fase em que estamos a pensar no futuro, comecei a pesquisar os cursos que a Universidade de Coimbra oferecia. E para mim, teria que ser a Universidade de Coimbra, porque foi em Coimbra que nasci e que estudei toda a minha vida, e não fazia sentido escolher outra instituição de ensino que não a Universidade de Coimbra.

Foi aí que me deparei com dois cursos que senti que me davam alguma alegria: Arqueologia e Antropologia. A partir daí, comecei a investigar quer uma área quer outra e percebi que, realmente, aquilo que gostava era a Antropologia, nomeadamente a Antropologia Biológica e a Forense. E, seguindo esse caminho, poderia até conciliar o gosto pela Arqueologia, porque teria a possibilidade de participar em escavações, por exemplo; e, dependendo do tipo de escavação ou do objetivo da escavação, poderia identificar restos humanos, ou seja, ossadas humanas, e poderia dar-lhes um nome, e até mesmo contribuir para serem entregues à família, o que penso que acaba por ser também um bocadinho um trabalho muito humanitário.

Sobre o mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses, como surge associado à sua formação inicial?

Foi muito natural. Uma vez que já tinha a licenciatura em Antropologia e já tinha um grande gosto pela área biológica e forense, o mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses seria o único que faria sentido. Porque, para além de aprofundar ainda mais os conceitos que eu já teria pela formação base em Antropologia Forense, permitiu-me conhecer outras áreas do saber, como a Toxicologia, a Genética, o Direito, e perceber como todas estas áreas são necessárias – há uma enorme interdisciplinaridade nas Ciências Forenses –, trabalhando em conjunto e com objetivos em comum, por exemplo, identificar um corpo e dar-lhe a “vida” que ele tinha perdido e entregá-lo à respetiva família.

Quanto ao caminho profissional na Universidade de Coimbra, mais precisamente no Instituto de Anatomia Normal, como surgiu a oportunidade de vir para aqui trabalhar?

Inicialmente, fui trabalhar para a área de Medicina Dentária, mais precisamente na Medicina Dentária Forense, ajudando nos exames de Medicina Dentária Forense. Entretanto, abriu vaga aqui para a Anatomia, e eu vim, uma vez que tinha os conceitos básicos que me permitiam trabalhar com cadáveres. E foi aí que me chamaram e perguntaram se teria interesse em vir para o Instituto de Anatomia Normal e eu disse que sim, com todo o gosto. A partir daí, comecei a desempenhar um bocadinho as duas funções: trabalhava na Medicina Dentária e vinha também para a Anatomia Normal. Entretanto, a Anatomia Normal precisava muito mais de mim e eu fiquei permanentemente aqui no Instituto.

Como é o seu dia a dia aqui no Instituto de Anatomia Normal?

O meu trabalho passa, muitas vezes, por receber as pessoas que querem fazer a doação do corpo. O que faço está muito focado na doação do corpo após a morte para fins de ensino e investigação. Num primeiro momento, recebo a pessoa e explico todo o processo inerente à doação. Num momento posterior, ao receber o corpo, tenho de iniciar todo o processo de conservação do corpo para que depois, quando há cursos ou investigações a decorrer, o corpo possa ser manuseado, sem qualquer problema, como se tivesse morrido naquele instante.

Relativamente às pessoas que pretendem doar o corpo à ciência, existe um perfil de doador que possa ser categorizado?

Há dois grandes grupos. O grupo de pessoas que vivem sozinhas, que pensam “eu vou morrer e o que vai ser do meu corpo após a minha morte, eu não tenho ninguém que me faça o funeral”. São pessoas muito sozinhas, que não têm família ou qualquer outro apoio.

O outro grupo são pessoas com doenças terminais, como o cancro, que pensam “eu tenho esta doença e porque não doar o meu corpo para fins de ensino e investigação para que contribua, eventualmente, para qualquer solução um dia mais tarde”. Normalmente, são estes dois grupos: pessoas sozinhas e pessoas com doenças em estado terminal.

Depois há também pessoas completamente “normais” que pensam nisto. Ainda no outro dia uma senhora veio aqui fazer a doação de corpo e saiu daqui muito feliz, porque era um sonho dela.

Que impacto é que o trabalho com a morte tem na sua vida?

Pode ser até um bocadinho cliché, mas o facto de trabalhar com a morte todos os dias faz-me apreciar mais a vida. Acho que aprecio a vida de uma forma diferente, pois a partir do momento em que comecei a trabalhar com cadáveres, com a morte, senti uma diferença em mim, na forma como enfrento e ultrapasso os dias que correm menos bem.

No seu dia a dia, o que acha mais desafiante neste trabalho que desenvolve?

Lidar com as famílias acho que é o mais desafiante. Isto porque uma pessoa doa o corpo e, a partir do momento em que a pessoa morre, alguém tem de nos contactar para entregar o corpo. E esse contacto tem de ser imediato, pois nós temos que ir logo buscar o corpo, ou seja, não pode haver cerimónias fúnebres, não pode haver despedidas, e isso por vezes é muito complicado para as famílias. É difícil para as famílias aceitarem isso. E essa é a parte mais complicada, lidar com as famílias enlutadas, que acabaram de perder um parente e não podem fazer a despedida. Essa é a parte mais complicada do meu trabalho.

E é também complicado receber o corpo das pessoas que recebeu ainda vivas?

Sim, ainda no mês passado um senhor morreu e quando fui buscar a declaração percebi que tinha sido eu preencher a declaração de doação, porque ele não sabia escrever. Não é que me lembre propriamente da pessoa, porque diariamente recebo imensa gente que quer fazer a doação do corpo, e, normalmente, este processo demora uns anos – este senhor tinha feito a doação em 2019 e morreu em 2022. Mas o ter visto a minha letra na declaração, fez com que me lembrasse da situação e lembrei-me daquele senhor em específico. Isso sim, também choca um bocadinho.

O que é necessário para manifestar interesse na doação do corpo à ciência?

Para que o corpo venha para o Instituto de Anatomia Normal, a pessoa em vida tem que fazer a doação do corpo. Temos um formulário e a pessoa preenche esse documento. Se o processo acontecer presencialmente, basta trazer o cartão de cidadão e eu reconheço que a pessoa está a doar o próprio corpo.

Em Coimbra, recebemos doações de pessoas dos vários distritos da zona Centro do país e se a pessoa interessada em doar o corpo residir nos distritos de Santarém ou de Castelo Branco, por exemplo, não se vai deslocar presencialmente aqui só para assinar um papel. Neste caso, pode enviar o formulário por e-mail ou por correio, desde que previamente tenha ido ao notário reconhecer a assinatura (e tem de enviar a declaração de doação e o reconhecimento da assinatura).

É um processo muito simples, basta preencher a declaração onde tem o nome, a data de nascimento e a morada da pessoa, e depois explica que está a doar o corpo à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra para fins de ensino e investigação, assina e envia o reconhecimento do notário, no caso do envio por e-mail ou correio.

O que significa doar o corpo à ciência?

Estes corpos são muito usados para o ensino de Anatomia. Há vários cursos de dissecção durante o ano para alunos de Medicina, onde fazem dissecções, para percebem os órgãos, as veias, as artérias… Mais à frente, quando já são médicos, internos ou especialistas, há também cursos de cirurgia e de técnicas cirúrgicas. Uma nova técnica é sempre aplicada em cadáver e, só mais tarde, aplicada em pessoas vivas.

Depois do manuseamento do corpo nestas atividades, o que acontece ao corpo?

A partir do momento em que o corpo deixa de ter utilidade, ou seja, já está completamente dissecado ou já foi alvo de várias técnicas cirúrgicas, nós temos um protocolo com a Câmara Municipal de Coimbra e o corpo é enterrado no Cemitério da Conchada.

Nós podemos devolver o corpo à família, se assim a família o desejar. Para isso, na altura em que vamos buscar o corpo, a família tem que avisar a agência funerária que mais tarde quererá reaver o corpo, e nós entregamos em urna fechada e, nesses casos, é a família que custeia o funeral que quiser fazer.

Há um tempo médio para a utilização do corpo?

Depende muito do número de cursos que temos – há anos em que temos três ou quatro cursos, depois outros anos em que só temos dois – e também do estado do corpo, porque se uma pessoa morreu, por exemplo, de cancro, mesmo conservado, embalsamado ou congelado, o corpo tem uma deterioração mais rápida. Mas, normalmente, entre um a três anos.

Falando agora da experiência com estudantes, já que o seu trabalho tem também essa vertente, como tem sido o envolvimento deles nestas aulas de Anatomia?

Anatomia é considerada a disciplina mais difícil do curso de Medicina, ou uma das mais difíceis. Mas é uma disciplina muito importante no curso, uma vez que é a base de toda a Medicina. A Anatomia é essencial para saber operar, para saber o diagnóstico que se deve fazer, e os alunos têm noção disso e são bastante aplicados.

Temos uma sala, onde temos vários modelos anatómicos, e, todos os dias, essa sala está completamente cheia de alunos a estudar os modelos, porque uma coisa é ver os livros e outra é ver o modelo 3D de como é uma veia, um crânio ou um determinado osso.

Já algum estudante percebeu que este não era o lugar dela/e pelo contacto com cadáveres nestes cursos de dissecção?

Têm sempre forma – até mais tarde – de evitar o contacto com cadáveres. Mas, tenho conhecimento de médicos – alunos que, entretanto, já se formaram – que fogem um bocadinho aos cadáveres e têm sempre possibilidade de contornar isso através da especialidade que escolhem. Nunca vi ninguém a desistir de Medicina por causa disto, mas já vi alguns alunos a desistirem de cursos com cadáveres, mas isso não implica que sejam piores médicos.

Relativamente ao seu percurso na Universidade de Coimbra, o que mais a marcou?

Acho que a Universidade de Coimbra tem uma magia muito própria e o que eu destaco sempre são as pessoas. Desde o tempo em que fui estudante, até agora que sou trabalhadora na Universidade de Coimbra, e até ao longo de todas as experiências que vamos passando, são sempre as pessoas que vão constituindo o nosso grupo de amigos, ou de colegas. E, portanto, são as pessoas que marcam e que ficam para sempre na nossa história aqui.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC sobre a importância da doação de corpos à ciência?

Acho que o ato de doar o próprio corpo para fins de ensino e investigação é um dos atos mais altruístas que existe. Estarmos a doar o nosso corpo para que alguém tire alguma vantagem disso, porque nós já não vamos ter vantagem nenhuma. É um ato de grande altruísmo.

É uma decisão que tem que ser muito bem pensada, pela pessoa, mas também falada e ponderada com a família. Pois, por vezes, é difícil para as famílias, e são as famílias que nos contactam. Neste caso, acho que devem pensar que estão a contribuir para o ensino de futuros médicos e para o avanço da ciência, e, a longo termo, que poderemos estar a salvar alguma vida. Os alunos começam por estudar Anatomia nestes corpos, depois passam a ser médicos e, se forem cirurgiões, têm de treinar as cirurgias e as técnicas cirúrgicas também nestes corpos. E acho que essa é a importância da doação do corpo: é contribuir para o avanço da ciência e para a formação dos médicos, para que, um dia mais tarde, os médicos que vão assistir os filhos ou os netos, ou mesmo os bisnetos, possam ter a formação completamente adequada à prática que exercem.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 14.12.2022