/ Caminhos na UC

Episódio #38 com João Peça

A investigação como resposta a uma ânsia de querer saber sempre mais um pouco

Foi na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra que começou o percurso de João Peça na nossa Universidade. Começou o seu caminho na mesma casa onde hoje, volvidos 24 anos, é professor. Simultaneamente, é investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular da UC (CNC-UC), onde lidera o grupo de investigação em circuitos neuronais e comportamento. Foi o interesse pela investigação que o trouxe ao curso de Bioquímica, fascínio que o levou, mais tarde já no doutoramento, aos Estados Unidos da América, onde passou pela Duke University e pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). O regresso a Portugal acabou por acontecer graças a um financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Um regresso que, mais do que movido pela conquista de um grande financiamento, foi impulsionado por querer saber sempre um pouco mais, procurando mostrar à sociedade que a nobreza da ciência reside na sua missão de nos ajudar a responder a questões que podem melhorar a nossa vida.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Comecei a licenciatura em 1999, terminei em 2004/2005 e tive a sorte de ser aceite em alguns programas doutorais. Na realidade, tive que optar entre o programa Gulbenkian e o programa aqui do Centro de Neurociências e Biologia Celular, e acabei por escolher participar no programa do CNC-UC. Era um programa internacional, em que nos era dada uma bolsa, éramos expostos a palestras de vários peritos mundiais nos mais diversos temas; e tínhamos liberdade para prosseguir os nossos estudos quer na própria instituição, quer no estrangeiro. No meu caso, tinha algum interesse particular em áreas que não estavam ainda tão desenvolvidas em Portugal. Eram áreas emergentes no contexto internacional e decidi rumar aos Estados Unidos. Acabei por desenvolver o meu primeiro contacto com a investigação a nível do doutoramento na Universidade de Duke, na Carolina do Norte, e estive lá alguns anos. Mais tarde, já no pós-doutoramento, continuei os meus estudos no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Boston. Numa fase mais final do meu pós-doutoramento, acabei por ter a oportunidade de voltar para Portugal, a Coimbra, através do programa Investigador FCT. E foi aí que começou um novo diálogo com a Universidade de Coimbra, em que me foi oferecida a possibilidade de montar o meu próprio grupo de investigação.

Nessa fase, as pessoas aqui do laboratório foram saindo porque se reformaram. Acabei por ficar sozinha e tive que começar a fazer coisas novas, que essas colegas faziam. E comecei a aprender outras valências, como a gestão deste laboratório em termos de coordenação e de compras para as aulas ou para a investigação.

Estou como assistente técnica durante cerca de nove/dez anos e, entretanto, o Senhor Reitor criou a mobilidade intercarreiras e intercategorias. Ainda bem que o fez e que teve essa vontade de ajudar os funcionários, porque, se assim não fosse, não haveria mudanças nem para mim, nem para outras pessoas, que também foram reclassificadas. No meu caso, passei de assistente técnica para coordenadora técnica, porque já exercia funções relativas a esse posto.

Por que escolheu formar-se em Bioquímica?

Na altura em que escolhi o curso, o meu objetivo principal era, essencialmente, investigação. Tinha duas áreas grandes pelas quais sentia interesse, mas, fundamentalmente, era a questão da investigação em si que me movia. E isso levou-me ao curso de Bioquímica, porque pareceu-me ser aquele que melhor preparava os alunos nessa carreira. Não há nenhuma certificação específica que é dada ao bioquímico e acabava (como ainda hoje é) por ser um trajeto muito direcionado para o campo da investigação. Hoje em dia, já é mais amplo, e múltiplas licenciaturas e mestrados acabam por apontar no sentido da investigação, mas àquela data pareceu-me que eram os estudos superiores que me dariam melhor essas capacidades que pretendia.

Como surge a curiosidade em torno do funcionamento do cérebro?

Quando comecei a ter um interesse bastante forte por investigação, ainda estava em conflito entre duas áreas. E foi na altura do trabalho de doutoramento que tive de optar. Mas sempre fui muito apaixonado pela área de virologia e pela área de neurociências. Muitas vezes, até me perguntam o porquê da escolha das neurociências e não da psicologia. E isso está relacionado com a questão da investigação mais fundamental, mais molecular e celular.

A virologia e as neurociências são duas áreas que podem-se cruzar, há pontos de toque, mas acabei por optar por enveredar e especializar-me nas neurociências. Fiz o doutoramento nessa área recorrendo a técnicas que, na altura, eram ainda emergentes, nomeadamente a nível de engenharia genética, que é uma tecnologia que nos permite modificar o genoma de animais e perceber o que é que determinadas mutações, que nós introduzimos, podem ter a nível de consequências no funcionamento do cérebro e dos próprios comportamentos dos animais. Hoje em dia, acaba por ser uma área que está em franca expansão, precisamente porque houve uma revolução muito recente nesta área da engenharia genética que permite, inclusivamente, alterarmos o genoma dos próprios humanos. Na altura em que comecei a enveredar por esta área, estávamos restritos a um determinado número de organismos muito mais limitado.

E como se sente quando assiste às evoluções tecnológicas como as que referiu, que acabam por ter impacto no seu trabalho?

Um dos aspetos que oferece maior recompensa, uma maior sensação de accomplishment, a quem trabalha nesta área é perceber que, de alguma maneira, contribuímos, cada um de nós, à nossa escala e de forma pequena, para um bem maior, que nos permite avançar e permite-nos começar a pensar em tratamentos, em curas ou prevenção de determinadas doenças. No caso do tipo de trabalho que nós fazemos, acabamos muitas vezes por estar a fazer estudos muito fundamentais, ou seja, estudos que, perante aquilo que vemos neste momento, podem ainda estar muito longe de uma aplicabilidade clínica. E posso deixar um exemplo prático do tipo de perguntas que nós tentamos resolver. Nós apercebemo-nos que existe uma mutação que se pensa que pode estar envolvida numa doença ou num transtorno psiquiátrico, mas é preciso perceber como é que essa mutação afeta as células do cérebro, como é que essas células depois comunicam entre si e como é que isso desemboca num comportamento ou em processos cognitivos alterados. Em qualquer um desses momentos, é possível ganhar conhecimento que nos permite mitigar, prevenir ou tratar o aparecimento de algum tipo de patologia. Um exemplo muito concreto, que atualmente começa a surgir com esta questão de alteração e edição do genoma para curar determinadas doenças, passa também por uma questão fundamental, que é: será que reverter mutações recupera necessariamente a doença? E pode parecer quase intuitivo dizer que sim, mas não tem que ser. Convém percebermos mais a fundo qual é o impacto real dos genes no desenvolvimento de determinada patologia. E nesse conhecimento fundamental ainda temos um longo caminho para percorrer até sabermos mais do que sabemos atualmente.

Qual foi o financiamento que conquistou que mais o marcou?

Se tivesse que apontar um financiamento em particular que mudou um pouco o meu trajeto não ia pelo maior financiamento ou por aquele que tem o nome mais sonante, mas ia por aquele que realmente mudou mais o meu trajeto, que acabou por ser o programa que me aliciou a voltar dos Estados Unidos para Portugal. Atrás deste depois vieram outros financiamentos, inclusivamente de um calibre muito superior e com nomes até mais sonantes e reconhecidos pela sociedade em geral, mas, efetivamente, o programa Investigador FCT mudou o meu trajeto. O valor monetário para começar a desenvolver a investigação não era o maior, era uma pequena ajuda para começar a fazer algumas coisas, mas realmente foi isso que me conseguiu atrair e lançar raízes aqui no Centro de Neurociências e Biologia Celular e na Universidade de Coimbra.

O que tem sido mais desafiante no processo de fazer investigação?

Acho que o desafio da investigação acaba por ser, muitas vezes, termos condições para continuar a fazer aquilo que nós queremos. A investigação tem características agridoces. É uma atividade nobre e são raríssimas as pessoas, se é que há, que enriquecem à custa desta atividade. Muitas vezes, acaba por passar pela vontade de responder a uma ânsia de saber mais e isso acaba por ser um bocado a missão dos investigadores. E essa ânsia de saber mais acaba por nos levar neste caminho que, muitas vezes, não é o mais fácil, porque é uma atividade extremamente competitiva. Utilizamos, várias vezes, dinheiro de fundações, dinheiros públicos e dinheiros do Estado e isso também põe uma responsabilidade bastante grande do lado dos investigadores. E, ao mesmo tempo, cria uma competição bastante afincada por esse tipo de financiamento. Mas acho que essa questão da dificuldade é temperada por esta ânsia que eu vejo, nos meus colegas e em mim próprio, de querermos saber mais. É uma dificuldade que é quase a resposta a uma necessidade, digamos assim.

É também professor do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. O que mais o motiva para dar aulas?

O que gosto mais no processo de docência (de dar aulas a alunos de licenciatura e também de mestrado) é a proximidade e a capacidade de inspirar ou de dar algum conhecimento que realmente faz um clique e que motiva depois estas pessoas, ou que levanta alguma pergunta que elas querem adereçar. Vejo como uma das missões principais do ensino universitário o dotar os alunos da capacidade de pensamento crítico e de questionar e de pensarem sobre as questões que são levantadas, levantando também as suas próprias questões, e irem à procura de respostas.

No tipo de disciplinas e cursos onde estou envolvido, não há propriamente o ensino profissionalizante, em que uma pessoa chega ao fim e tem uma determinada profissão. Por isso, a capacidade de darmos determinadas competências é importante. Os conhecimentos são muito importantes, mas também a forma como treinamos os alunos ou como os expomos a determinados materiais. E é recompensante quando começamos a ver os mais novos a questionarem, a terem as suas próprias ideias, e a quererem saber mais. Acho que é essa a parte mais recompensante desta atividade: por um lado, desenvolvermos investigação que, por inerência, está no limite do conhecimento, e conseguirmos transmitir aos nossos alunos onde é que está o limite do conhecimento. Isto é algo que a mim me motiva bastante a inspirar a próxima geração a querer saber mais e a ir procurar e avançar o nosso conhecimento.

Que momentos mais marcaram o seu percurso na UC?

Aquilo que mais marcou o meu percurso pela Universidade de Coimbra acaba por não ser um momento que tenho cá, em Portugal. Aquilo que mais marca o meu percurso académico em Coimbra é chegar a instituições de topo mundiais, como o MIT ou a Duke University, estar em contacto com colegas de outras universidades internacionais e perceber que a formação base que tinha recebido e que os meus colegas também receberam na Universidade de Coimbra está ao nível dessas universidades. Acho que isso é realmente marcante. E acho que é importante essa sensação de, digamos, ganhar mundo e perceber um pouco o que se passa lá fora.

Obviamente que nós competimos a outro nível nos recursos que temos disponíveis, na acessibilidade a financiamento a nível de investigação, mas a preparação base que é dada aos nossos alunos de licenciatura e de mestrado na UC, na minha ótica, compara muito bem com aquilo que eu vejo que é dado lá fora. Conseguimos ser bem-recebidos quando vamos trabalhar no estrangeiro precisamente porque essa formação é muito forte e muito sólida. E foi marcante quando me apercebi que era assim.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de deixar a investigadores/as da UC em jeito de incentivo ao seu trabalho?

Aquilo que posso partilhar e dizer nesse sentido é que a investigação é uma atividade nobre. As colegas e os colegas que se dedicam a esta atividade fazem-no com espírito de missão, com condições que não são as mais fáceis e não tendo, se calhar, todos os recursos que gostariam de ter, mas é importante perseverar.

Em tempos recentes, tivemos claras provas de que a investigação é importante, que tem um impacto real na sociedade. Temos noção que isto acontece no dia a dia, mas acho que com a pandemia, por exemplo, qualquer cidadão comum apercebeu-se da importância da ciência base, da ciência fundamental que nos permite chegar a respostas mais concretas de forma célere. E permite-nos também educar a própria população para que as pessoas tenham confiança de que se consegue dar resposta. Acho que os investigadores devem sentir-se, como um todo, orgulhosos deste processo, porque não foi uma única pessoa, mas a comunidade científica que conseguiu e consegue, muitas vezes, dar esta resposta.

Aquilo que diria como sendo um objetivo é manter o foco. Obviamente, estamos numa atividade que é muito competitiva, em que as pessoas, muitas vezes, não conseguem o financiamento que querem ou têm dificuldade em publicar nas revistas de mais alto impacto ou de conseguir expor o seu trabalho da forma que mais gostariam, mas no final de contas é uma atividade que merece o nosso esforço e que merece a nossa dedicação.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Ana Bartolomeu, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 29.09.2022