/ Caminhos na UC

Episódio #34 com Maria Cristina Canavarro

Desde 1990 a provar, com base na ciência, que não há saúde sem saúde mental

Chegou à Universidade de Coimbra enquanto estudante e foi a Psicologia a primeira escolha. Uma escolha que se tornou o percurso de toda a vida. Passados 32 anos desde que começou a sua carreira como docente, Maria Cristina Canavarro concilia hoje esse caminho com a investigação e com a prática clínica. É professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, coordenadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental e diretora da Unidade de Psicologia Clínica Cognitivo Comportamental (UpC3), plataforma que presta serviços de prevenção e tratamento da doença mental a toda a comunidade. O comportamento humano continua a ter o mesmo fascínio desde o ingresso no curso e continua a mover a investigação, a prática e a docência da professora da Universidade de Coimbra, casa onde fez todo o seu caminho.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso foi todo na UC. Ingressei em 1984 enquanto aluna. Não tínhamos um edifício da Faculdade de Psicologia, mas foi enquanto aluna de Psicologia que aqui cheguei. Depois, mais ou menos em 1990, acabei por ingressar na carreira docente e aqui estou até hoje. Tive também algumas incursões internacionais, a mais significativa talvez nos Estados Unidos, na equipa do Prof. David Barlow. Primeiro, em Albany, no estado de Nova Iorque, e depois em Boston, com mesma equipa que se mudou para lá, com a qual ainda hoje mantenho uma forte ligação.

Tive a sorte de começar numa altura em que a escola das Terapias Cognitivo-Comportamentais começou, em Portugal, aqui em Coimbra pelas mãos do Professor Adriano Vaz Serra, com intervenções terapêuticas na área da Psicologia, breves e empiricamente validadas. Na altura, era aluna e quando somos jovens nem nos apercebemos muito bem destes momentos, mas foi um marco importantíssimo, que tive a sorte e o privilégio de acompanhar.

Por que escolheu seguir o seu caminho na Psicologia?

Eu sempre gostei de vida. Sempre gostei de Biologia e de todas as Ciências da Vida, mas o comportamento humano sempre foi um fascínio. E surgiu de uma forma natural. A Psicologia é vasta e tem áreas mais básicas e outras mais aplicadas, mas acho que aquilo que me captou é uma palavra-chave: “ajudar”. E este fascínio pela vida, pelo comportamento humano, com a vontade de ajudar, levou-me até aqui.

Depois há também influências. O que me trouxe a esta área não foi só uma coisa, foi uma constelação de acontecimentos. Na minha família, que é grande, há vários percursos académicos, muitos na área da saúde mental e da saúde, de uma forma geral. Estive sempre muito próxima de tudo isto. E acabou por ser uma escolha muito natural.

Trabalha em várias áreas da Psicologia. Há alguma que a preocupe particularmente neste momento?

Há inquietações pessoais. Sempre me questionei sobre as diferenças individuais. Por que é que algumas pessoas são mais vulneráveis que outras para a psicopatologia? E até perante determinados acontecimentos adversos, como é que as respostas são tão diversas? O que é que protege umas pessoas e o que é que vulnerabiliza outras? Isto sempre foi uma inquietação. Dentro destas diferenças individuais, há muitos fatores que contribuem para o resultado desta equação. Há vulnerabilidades biológicas, há vulnerabilidades ao longo da aprendizagem, há vulnerabilidades de diversos contextos – social, económico, cultural. Dentro deles, sempre elegi, para a minha investigação, o contexto relacional, as relações como fator de vulnerabilidade e proteção, sempre foram um interesse grande.

Nestes cruzamentos, o acaso também tem um peso importante. Uma vez, no final de uma conferência, um senhor ficou para falar comigo. Era o professor Jorge Fagulha, da Faculdade de Medicina e, na altura, diretor da Maternidade Daniel de Matos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Eu acho que ele tinha a intuição de que a psicologia era muito importante numa maternidade, sem saber muito bem de que forma operacionalizar isto. Aceitei esse desafio que ele me foi colocar – ser responsável pela Unidade de Intervenção Psicológica da Maternidade Daniel de Matos – e criou-se um protocolo, que durou 21 anos, entre a Maternidade Daniel de Matos e a Universidade de Coimbra. Acho que foi um embrião muito importante para a investigação e a prática clínica na área.

Coordena a UpC³, plataforma que presta serviços de prevenção e tratamento da doença mental a toda a comunidade, desde 2020. Por que motivo foi pensado este projeto?

Gostamos de lhe chamar “Up”, que significa subir, levantar o humor: UpC³ - Unidade de Psicologia Clínica Cognitivo-Comportamental. Este cognitivo-comportamental é o mesmo da Escola Cognitivo-Comportamental da Universidade de Coimbra, que é, de facto, uma marca. A UpC3 urgiu nesta preocupação com a transferência de conhecimento. Sempre tive esta preocupação, porque conhecimento produzido e não partilhado não faz sentido, quer do ponto de vista científico, quer para os profissionais. E temos também destinatários últimos. E numa área aplicada, como a Psicologia Clínica e da Saúde, os destinatários últimos são as pessoas.

Nós vamos avançando, vamos ficando mais velhos e, neste contexto, aquilo que gostaria de ver é a continuidade da investigação e da divulgação científica, que é algo que está dentro de mim. Os projetos e programas que desenvolvemos não podem ficar na gaveta. E a UpC3 surge neste contexto. Tínhamos um know-how imenso de investigadores, de psicólogos clínicos; tínhamos programas financiados com dinheiros públicos, e era preciso que isso fosse transmitido e que chegasse às pessoas (e este conhecimento é também utilizado para que os alunos também possam aprender connosco). Queremos ter uma porta aberta, na vertente da Psicologia Clínica, à comunidade.

A pandemia trouxe uma nova forma de olhar para a saúde mental, com menos estigmatização?

Acho que essa foi uma parte mais positiva da pandemia. E, sobretudo, por uma coisa: porque todos nos sentimos mais vulneráveis. Há pouco falava destas diferenças individuais, e é preciso perceber que não há ninguém que seja invulnerável. Ninguém. Nenhum de nós. Podemos ser mais resilientes, e somos resilientes a fatores de risco específicos. Isto é, por uma pessoa ser resiliente a um determinado fator – que, visto de fora, é um acontecimento muito maior, muito mais grave – não quer dizer que não seja vulnerável, noutra época da vida, a outras circunstâncias, que a desorganizem do ponto de vista emocional. Acho que as pessoas sentiram na pele a vulnerabilidade. E é sempre bom sentir na pele, olha-se de uma outra maneira. Acho que esse foi um aspeto muito importante que a pandemia nos trouxe.

Ainda há muitos tabus relativamente à saúde mental?

Sim, há muitos tabus ainda, como esta questão de quem tem problemas emocionais é mais fraco. Um outro tabu é o de que há um caminho para a saúde mental e um caminho para a perturbação. E o caminho é o mesmo. Como nas linhas de caminho de ferro, há uma série de agulhas com as quais podemos ir por um lado ou ir por outro.

É preciso intervir, e é preciso pedir ajudar, mas é preciso prevenir! E acho que nessa parte ainda nos falta caminhar muito. Falta-nos muita literacia sobre saúde mental. Não há saúde sem saúde mental! Não é corpo para um lado e cabeça para outro; mente de um lado, corpo do outro. Não é, porque tudo isto funciona num só, a pessoa é um todo.

Acho que hoje em dia as pessoas chegam de uma forma muito diferente a pedir ajuda. Felizmente, de uma forma também muito mais fácil e a conseguir desmontar isso. E isso é uma coisa boa. Mas, um desafio foi, e continua a ser, normalizar isso. Normalizar esses pedidos de ajuda, porque muitas vezes as pessoas não querem que se saiba... E cada vez menos isso acontece. É preciso perceber que isto é uma etapa, são os percursos de que há pouco falava, das linhas dos comboios, das diversidades trajetórias, dos ramos de uma árvore, que têm diferentes percursos. E as pessoas começam a perceber que é assim, que estão numa fase mais difícil e que é preciso ajuda.

Nos seus largos anos de experiência clínica, quais é que têm sido os maiores desafios do acompanhamento de utentes?

É preciso gostar de pessoas. E é preciso perceber que, muitas vezes, aquilo que elas fazem é o possível, mesmo em situações em que custa a compreender como é que se chega ali ou como é que se pode fazer aquilo. As pessoas fazem o que podem, de acordo com o seu percurso, com a informação que têm, e com a sua aprendizagem. É preciso gostar de pessoas, perceber e acolher esse sofrimento. Hoje em dia, ouve-se muito falar na compaixão, que é um ingrediente fundamental. A compaixão, este sentir com o outro e compreendê-lo, é um desafio muito grande.

E é também um desafio fazer chegar às pessoas a oferta diversificada de acompanhamento. Há grupos terapêuticos, há programas inteiramente digitais, com presença humana no digital ou blended, que são extraordinariamente eficazes e importantes que nos permitem trabalhar de forma assíncrona. É preciso fazer a sociedade entender que há esta diversidade de opções. Todas elas, sempre, baseadas na evidencia. Isto é também um desafio.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC em jeito de incentivo ao cuidado com a saúde mental?

Na lógica da prevenção, aconselho tentar conhecer-nos melhor, conhecermos melhor as nossas emoções e aumentarmos a literacia. E ter autocuidado. Muitas vezes, as pessoas associam o autocuidado à meditação, a um espaço reservado só para si. Mas há outras formas de autocuidado, como por exemplo, ter as compras de supermercado feitas ou ter as finanças em ordem, sentir a vida mais em ordem. Há vários aspetos de autocuidado que são importantes.

Outra mensagem importante é descentrarmo-nos e estar atento ao outro. No fundo, é sairmos dos nossos sapatos e colocarmo-nos nos sapatos dos outros, mas verdadeiramente. Tanto nas relações pessoais, como nas relações profissionais na comunidade UC, para percebermos a perspetiva do outro.

Ainda outra mensagem importante: quando passamos a barreira e sentimos que precisamos de ajuda, devemos pedi-la. Devemos estar atentos aos sinais de risco e pedir ajuda. E usufruir da vida o melhor possível, nas suas diversas vertentes. É esta a mensagem.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 04.08.2022