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Episódio #26 com Natércia Coimbra

Desde 1985 a dar nova vida às histórias de luta pela liberdade em Portugal

Chegou à Universidade de Coimbra em 1972 para frequentar a licenciatura em Direito. Nascida e criada numa casa onde se lia e discutia política durante o regime ditatorial, Natércia Coimbra sonhou estudar Sociologia e desejou trabalhar no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra (CD25A). Não concretizou o sonho de estudar Sociologia, pois, naquela altura, a disciplina era perseguida em Portugal. Mas cumpriu a missão de trabalhar no CD25A-UC, onde está desde 1985. A coordenadora técnica do Centro começou por tratar uma caixa de 30 livros, que foram doados no dia em que se anunciou a criação do projeto. Passados 37 anos, o Centro conta com mais de 3 milhões de documentos, espalhados por 2 pisos, onde encontramos diversos tipos de conteúdos, como correspondências, panfletos, fotografias, livros, pins, cartazes, ficheiros áudio ou filmes. E é no meio desta pluralidade que tem passado os seus dias, localizando, organizando e analisando arquivos de pessoas e instituições que têm um papel estruturante na compreensão da História portuguesa recente.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso é praticamente todo feito na Universidade de Coimbra. Vim para Coimbra estudar em 1972 e por aqui fiquei. Vim estudar Direito ainda antes do 25 de Abril, estávamos no ano letivo de 72/73. Terminada a licenciatura, a vida familiar entretanto constituída manteve-me por aqui e fui fazendo os estágios de advocacia e de notariado. Nessa altura – como ainda agora também – não era evidente que tivéssemos imediatamente emprego. De forma que era preciso completar a licenciatura com estágios da área. Fiz um bocadinho de tudo: dei aulas por pouco tempo no ensino secundário; trabalhei esporadicamente como assistente de investigação no Departamento de Antropologia, onde apoiava investigadores portugueses e estrangeiros, e foquei-me, sobretudo, no estágio de advocacia, que demorou mais tempo. Como não havia muito emprego na área do Direito, fui diversificando a minha experiência.

A escolha de Direito digamos que foi uma segunda escolha. O que teria adorado fazer – mas nessa altura era impossível fazê-lo em Portugal – era ter estudado Sociologia. Mas para estudar Sociologia era preciso ir para o estrangeiro. Era uma área do saber muito pouco reconhecida e até perseguida em Portugal – estávamos em ditadura – e só saindo do país se conseguia prosseguir estudos nessa área. Era muito difícil para nós e para os meus pais sustentarem-me no estrangeiro, mesmo que eu trabalhasse. Cheguei a ponderar isso, mas acabei por pensar num curso técnico que me desse abertura, que fosse uma ferramenta boa. E o Direito tinha isso, tinha a parte teórica, tinha a parte técnica, abria-me alguns horizontes e dava-me uma formação básica sólida para a vida. Mas sempre tive uma apetência muito grande pela área cultural.

Depois de ter terminado os estágios, em conversa com gente amiga, falaram-me no curso de Bibliotecário-Arquivista, que era também bastante recente nessa altura. Entrei no curso em 1979/1980 e na área das Ciências Documentais o curso de Bibliotecário-Arquivista era uma especificidade de Coimbra. Vinham alunos de todo o lado, de todas as outras regiões e universidades, estudar em Coimbra porque era a única universidade que tinha esta formação especializada. Achei que podia ser uma coisa interessante e gostei. Fiz o curso em dois anos e depois um ano de estágio na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC). Comecei também, por essa altura, a trabalhar informalmente, integrando uma equipa que passei a coordenar para organizar e catalogar uma grande biblioteca, com cerca de 40 mil volumes que tinha sido adquirida pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), a Biblioteca Doutor Joaquim de Carvalho, um antigo e muito prestigiado professor da FLUC. Fazia isso no horário pós-laboral, porque estava em simultâneo a fazer o estágio. Gostei muito do estágio que fiz na BGUC e da experiência que estava a ter na FLUC e achei que aquela podia ser a minha via profissional.

Ingressou no ensino superior durante o regime ditatorial. Teve todo o apoio dos seus pais para seguir caminho nas Ciências Sociais?

Os meus pais eram bastante modernos, felizmente. Eram pessoas que me habituaram desde muito cedo a ter opinião, a defendê-la, a lutar por aquilo em que acreditava. Nunca me impuseram um caminho. Mas havia uma coisa que sabíamos: era preciso cumprir os objetivos mínimos, educarmo-nos, tendo, se possível, um curso superior, mesmo com as dificuldades que um casal de classe média tinha (a minha mãe era professora e o meu pai trabalhava no setor de serviços em seguros). Uma coisa que fizeram desde sempre – tanto comigo, como com o meu irmão e a minha prima-irmã, criada connosco – era convencerem-nos de que era pela educação que tínhamos que lá chegar. Havia sacrifícios a fazer, mas iríamos estudar se assim o decidíssemos e tínhamos que cumprir com esse objetivo e compromisso. Tinha cinco anos para mostrar o que valia.

Sempre gostei muito mais das áreas das Ciências Sociais e Humanas e, por isso, não me foi difícil não seguir para as Ciências. Ainda que, em certo momento, tenha ponderado Medicina, não tinha grande apetência por algumas das disciplinas e achei que a área das Humanidades era mais aquilo que me interessava. Sempre gostei muito de Sociologia, de compreender os factos sociais, porque em casa as discussões eram estimulantes. Falávamos de tudo, apesar de haver muita censura cá fora. Mas sabíamos que dentro de casa o que se falava era para nos ir formando e preparando para a vida. E questionando, sempre. Prepararam-me muito para isso. Apoiaram-me na vinda para Coimbra, assim como me apoiaram nas outras escolhas que fui fazendo na vida, porque sabiam que as escolhas eram fundamentadas.

Quando escolhi Direito e lhes disse que o que eu gostava realmente não existia no país e que, por isso, era uma impossibilidade, eles acharam bem. Não se opuseram. Provavelmente, se tivesse escolhido qualquer outra licenciatura eles não diriam que não, porque nunca interferiram muito nas nossas escolhas. Fomos sempre muito livres, desde que justificássemos as nossas escolhas e entendêssemos o que nos era pedido e estivéssemos bem connosco. Desse ponto de vista tive muita sorte, cresci num meio estimulante, com muitos amigos sempre à volta e com grandes discussões. E também com muita alegria, os meus pais eram pessoas alegres. Convivia-se, cantava-se e tocava-se música, aprendiam-se algumas das canções de intervenção que começavam a surgir nessa época. Conhecíamos muita gente que tinha outras perspetivas de futuro para o país. Já nessa altura sonhávamos com um país livre e diferente. Quando pensei que sair de Portugal poderia ser importante, havia, ao mesmo tempo, qualquer coisa que me puxava também para tentar encontrar o meu rumo dentro do país. Os meus pais sempre nos estimularam muito para isso. Com calma, com ponderação, mas, sobretudo, com inteligência, preparando-nos para a vida.

Em nossa casa lia-se muito, conversava-se, discutia-se muita política e o rumo que queríamos dar às nossas vidas. Comentava-se muito a ausência de liberdade. Sobretudo a minha avó materna, que vivia connosco, que tinha vivido a Primeira República e que ainda era mais moderna que a minha mãe. A minha mãe, sendo uma pessoa aberta, era mais severa e um pouco mais solene. A minha avó não, era uma força da natureza também, era uma pessoa bem-disposta, inteligente e sábia, mesmo não tento podido ir muito longe nos estudos. E como tinha vivido a liberdade da Primeira República estranhou imenso o que se seguiu, e falava muito disso, sobretudo da forma como a vida nos anos da Primeira República tinha aberto as portas a muita coisa. Ela frequentava muito o teatro, a ópera. O meu avô era instruído e culto e viviam bastante ativamente a vida cultural. A minha avó estranhou muito a tristeza do Estado Novo e falava disso, de que o tempo tinha obscurecido muito e que as mulheres tinham perdido liberdade. A minha avó ainda se divorciou e pôde viver a vida dela depois. Casou pela segunda vez, trabalhou por conta própria e criou dois filhos do primeiro casamento. Estranhou muito o fechamento dos anos de chumbo. Entre nós, sempre falámos muito do valor da democracia e vimos como o meu pai se empenhou na luta sindical e política: foi um dos fundadores da Acção Socialista e um dos negociadores do contrato coletivo dos Trabalhadores dos Seguros.

Tinha este caldo, em casa, de opiniões, de memórias, de recordações e de esperança de que se poderia viver de outra maneira. E de que era preciso lutar para se viver de outra maneira. Vinha de um meio estimulante a vários níveis e acho que isso me formou e fortaleceu a convicção de que a educação é fundamental, assim como a justiça social, a luta por melhores condições de vida para todos e a ideia de que a sociedade só pode evoluir quando nos instruirmos mais e melhor.

Desempenha, desde 1985, a função de coordenadora técnica do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Foi um acaso que a trouxe até aqui ou foi isto que desejou para o seu percurso profissional?

É uma história muito engraçada porque acho que tenho tido muita sorte na vida em muitas coisas. Às vezes, as coisas vêm ter connosco. Mas claro que lutamos, preparamo-nos e eu também tracei e percorri caminhos prévios. O Centro de Documentação 25 de Abril foi criado em dezembro de 1984. Houve na UC um grande colóquio, que se chamava 25 de Abril: 10 Anos de Transição Democrática, talvez o primeiro grande evento académico no país sobre o tema da alteração do regime político, que envolveu imensa gente e foi organizado pelo Centro de Estudos Sociais. Nessa altura, já estava a trabalhar na Faculdade de Letras, onde, como contei há pouco, tinha começado a trabalhar informalmente. Mais tarde fui integrada no quadro, ficando responsável por algumas bibliotecas, sobretudo da área de História e das Línguas e Literaturas Modernas. Tinha nessa altura cerca de sete bibliotecas/coleções da FLUC a meu cargo.

Fiquei, como muita gente ficou então, muito entusiasmada com aquele colóquio. Foi muito concorrido e apareceram muitas daquelas pessoas que conhecíamos bem de nome, como militares de Abril, ministros, ex-ministros, ex-oposicionistas, muitos académicos de renome. Foi um grande acontecimento! Na altura, lembro-me que ia no carro, a descer os Arcos do Jardim, e no noticiário, à hora de almoço, ouvi o Doutor Boaventura de Sousa Santos fazer uma apreciação dos trabalhos que já tinham decorrido naquele colóquio. E ouço-o dizer que tinha acabado de ter uma boa notícia: o Senhor Reitor (na altura, o Doutor Rui de Alarcão) tinha anunciado dar seguimento a um pedido aprovado no colóquio para a criação de um arquivo/centro de documentação sobre o 25 de Abril. E aquilo fez um clique em mim e pensei: “Quem me dera estar neste projeto. Que coisa interessante!”. E não é que daí a uns dias recebo um telefonema do Doutor Boaventura, que tinha sido meu professor, a convidar-me para levar a cabo a tarefa?

Eu tinha passado o 25 de Abril na Universidade. Foi estimulante, foi um período espantoso! Em 1974, com o 25 de Abril, a Universidade mudou radicalmente! Entretanto abriu-se o leque de disciplinas e aparece a Sociologia. E eu fiquei felicíssima! E um dos nossos professores foi o Professor Boaventura, que veio dar aulas na Faculdade de Direito, na área das Ciências Sociais. Foi um professor que nos marcou. Lembro-me que vinham pessoas de todas as Faculdades assistir às aulas, os anfiteatros estavam sempre cheios, com pessoas sentadas no chão. Era tudo novo para todos, ninguém estava habituado a pensar como a Sociologia nos obriga a pensar: a interpretar e a explicar os factos sociais com método. Foi muito estimulante ter contacto com novos professores, como o Professor Jorge Leite com o Direito do Trabalho ou o Professor Figueiredo Dias com o Direito Criminal. E uma das primeiras coisas que estes professores fizeram, particularmente o Professor Boaventura, foi ensinar-nos metodologias de investigação (como a leitura seletiva e analítica de imprensa ou a leitura crítica de textos), que era uma coisa que faltava no curso. E a mim isto marcou-me, como com certeza também marcou muitos dos meus colegas.

Entretanto tinha perdido o contacto, não tinha voltado a ver o Doutor Boaventura, e recebo um telefonema dele. Eu era muito nova altura, e ele diz-me que não fora a primeira escolha, mas que as pessoas com quem tinha falado tinham dito que eu seria a pessoa com o perfil indicado para a missão, porque estava a começar a minha carreira e tinha energia para desenvolver o projeto. Claro que lhe disse logo que sim. Fiquei muito contente. E agradeci também às minhas colegas que tinham aventado o meu nome. Foi assim. Tive uma sorte enorme, porque três ou quatro dias depois de ter pensado que queria fazer uma coisa, essa coisa vem ter comigo. O Senhor Reitor também me contactou, muito gentilmente, para formalizar o convite e para encontrar a melhor forma de desenvolver este projeto, articulando por algum tempo com o trabalho que desenvolvia ainda nas bibliotecas da Faculdade de Letras.

Nos primeiros tempos, não havia nem espaço. Começámos na Rua Antero de Quental, numa cave. Quando cheguei, só tinha uma pequena secretária e um caixotinho de trinta livros que tinham sido oferecidos no referido colóquio. Como tinha sido divulgado que seria criado um centro de documentação, houve logo gente que se prontificou a oferecer coisas. Foi um processo muito interessante e muito estimulante a partir daí.

O Professor Boaventura, nomeado entretanto diretor do CD25A, é uma pessoa que sempre soube puxar pelas equipas, e desafiou-me a desenvolver todo o projeto. Pensei no que seria preciso em termos de pessoal, de instalações, de mobiliário e de financiamento inicial. E acabámos por conseguir um apoio bastante grande da Fundação Calouste Gulbenkian que foi fundamental para a fase de instalação do Centro, ao nível de mobiliário e equipamento. Parece que tudo se harmonizou no sentido de facilitar o nascimento de um tipo diferente de arquivo. E digo diferente porque foi a primeira vez que se pensou em recolher os papéis privados de gente que participou ativamente na vida política e na mudança de regime. Isso nunca tinha acontecido em Portugal.

Este é um arquivo total (e não era essa a tradição dos arquivos), porque reúne, no mesmo local, tipologias variadas que dizem respeito a uma mesma temática. Temos biblioteca, temos arquivo, temos todo o tipo documentação (objetos, iconografia, som). Este conceito de arquivo provinha da tradição arquivística canadiana e tinha surgido há muito pouco tempo na Europa o primeiro grande arquivo privado de titulares de cargos políticos, o Centro Georges Pompidou. Normalmente, os políticos não entregavam a instituições públicas os seus arquivos pessoais. Mas é muito importante percebermos como é que as decisões políticas são tomadas. E uma coisa é aquilo que fica nos arquivos oficiais (com o traço da burocracia e da administração); outra coisa são os papéis que serviram de base à tomada de decisão, à reflexão, à estratégia política. Esta tipologia de arquivo era muito recente e isso entusiasmou-me, e comecei a pensar que em Portugal o Centro poderia ser o primeiro arquivo deste tipo – ainda por cima na Universidade de Coimbra – a fazer uma recolha seletiva, mas criteriosa e sistemática, dos papéis privados do povo, de quem participou ativamente no processo de transformação política do país. E nós temos não só os arquivos que dizem respeito a pessoas que tiveram cargos oficiais e governativos, mas também temos os documentos dos militantes políticos, de ativistas sociais, de associações culturais e cívicas ou de simples colecionadores que se interessaram pela transição democrática portuguesa.

E eu tive a possibilidade de participar no nascimento de uma instituição que era única no país. E que ainda hoje tem um trabalho que não é muito habitual ser feito. E tudo isto aconteceu muito graças também à visão de um conjunto de professores da Universidade de Coimbra, liderados pelo Doutor Boaventura de Sousa Santos. Foram eles que perceberam que não podiam perder a documentação que tinha sido criada de base, de baixo para cima. Estamos a falar de documentos da época (1974-1985) quando as pessoas mais participaram nas discussões políticas, procurando lutar e resolver os seus problemas. Os documentos que temos aqui são o traço do que foi o quotidiano do povo português durante os anos em que era preciso fazer tudo. Estava tudo por fazer: a conquista da liberdade, da paz e da democracia. Aprofundar e viver a democracia é algo que ainda hoje estamos a fazer, é uma conquista diária.

A criação deste centro reflete também uma nova visão do país em relação ao seu próprio património documental. E a consideração que se passou a ter pelo papel e atividade dos que estão em baixo, na raiz das coisas, e que ajudam a construir o país.

Qual é o papel do Centro de Documentação 25 de Abril da UC na comunidade?

O CD25A nasceu em democracia e também com esse espírito democrático. A tutela universitária soube manter o apoio ao projeto e permitir que se afirmasse e desenvolvesse. Nós vivemos, sobretudo, de doações, quase não comprámos nada. Neste momento, temos cerca de três milhões de documentos. Da tal caixinha dos trinta livros no início, passámos para dois pisos cheios de documentação.

As pessoas confiam na Universidade e procuram-nos imenso para fazer doações. Temos uma boa dinâmica de ofertas e neste momento estamos com cerca de 480 doadores. E temos um pouquinho de tudo: pequenas coleções e arquivos, mas também coleções mais vastas e arquivos muito volumosos. Em relação às bibliotecas, repetimos um bocadinho os exemplares, porque muitas pessoas tinham exatamente os mesmos livros. Mas em relação aos papéis privados e às coleções pessoais – como os papéis que são resultado da intervenção cívica, política, social, militante e partidária – temos materiais únicos. Focamo-nos, sobretudo, na prospeção de arquivos que são o resultado do labor de alguém no desempenho de determinadas funções, que podem ser públicas ou privadas. E chamamos a isto arquivo porque é um conjunto que não se pode desmembrar. Temos também as coleções, de pessoas que, por qualquer razão, colecionaram autocolantes, pins de lapela, cartazes, pequenos jornais e boletins, panfletos ou comunicados (que hoje usamos menos, mas que eram utilizados para distribuir informações de alguns grupos mais politizados ou culturalmente mais atentos). E este conjunto de informação praticamente só existe aqui.

Quando começámos a recolher os papéis privados, tivemos a preocupação de ir buscar aquilo que era raro, o que mais ninguém tinha. E como entravam de uma forma benévola – através de doações – só tínhamos uma forma de agir: retribuir à sociedade e às pessoas o trabalho de organização, que é o trabalho que mais gosto de fazer. E partilhamos estes materiais com a comunidade, mas, sobretudo, com a comunidade académica.

Quando foi criado, a missão do CD25A era prestar apoio à comunidade académica na investigação e no ensino. E ainda hoje é essa a nossa missão. Recebemos e damos prioridade aos nossos estudantes, professores e investigadores, mas recebemos também pessoas que vêm de todo o lado. Por exemplo, houve uma fase em que vinham muito mais investigadores e investigadoras do estrangeiro à procura de informações, isto porque em Portugal havia ainda dificuldade em lidar de forma crítica e interpretativa com a História recente. O Centro coleciona documentação sem a qual nenhum historiador pode estudar a segunda metade do século XX em Portugal, do ponto de vista histórico, económico e dos movimentos sociais.

Não fechamos a porta a ninguém. Trabalhamos para o mundo. E o perfil dos nossos utilizadores reflete isso mesmo: recebemos jornalistas, investigadores em diferentes níveis de carreira, doutorandos, escritores, alunos dos vários níveis de ensino, agentes culturais e outras pessoas ligadas à cultura a preparar iniciativas diversas.

O que é que torna o seu trabalho entusiasmante?

Há documentação preciosa, rara e diversa. Sempre que abro um espólio apaixono-me pelas coisas e quero sempre tratar toda a documentação até ao fim. Temos aqui informações de pessoas únicas! Acho que a parte mais entusiasmante do meu caminho profissional tem sido a quantidade de gente interessante que tive o prazer de conhecer. Conheci quase todos os nossos 480 doadores e há pessoas que passam pela nossa vida e que não esquecemos mais.

São também entusiasmantes os momentos em que pensámos algo, mesmo que seja muito ambicioso, e conseguimos concretizá-lo. Isto aconteceu, por exemplo, com a grande exposição que fizemos dedicada ao 25 de Abril, em 1991. Nesta exposição, que contou com a participação da UC e da Câmara Municipal de Coimbra, quisemos ter o carro de combate, a “Chaimite” que tinha retirado Marcelo Caetano do Quartel do Carmo após a rendição do governo. Foi uma ideia do responsável pela conceção e design da exposição, o Dr. Luís Pascoal, infelizmente já desparecido, e para isso foi preciso falar com o Salgueiro Maia para nos ajudar a concretizar este pedido e também para nos apoiar noutras áreas da exposição. O Salgueiro Maia confiou também à Universidade de Coimbra um grande conjunto de documentos e objetos, que veio juntar-se ao nosso primeiro grande arquivo, recolhido e depositado no Centro pela Associação 25 de Abril. Tive então a possibilidade de trabalhar com ele na organização desse espólio, que incluía também documentação das companhias que tinha comandado e lutado durante a Guerra Colonial Portuguesa. Achava que aquela documentação viria a ser precisa, nomeadamente às viúvas dos combatentes ou àqueles que tinham de provar oficialmente que combateram. E viemos mesmo a emitir essas declarações quando foi necessário. Foi uma experiência muito especial e marcante na minha vida e creio que na de quem prestava então serviço no Centro, a do convívio com Salgueiro Maia.

Há também outras coisas que queria muito ainda tratar. Temos muitos arquivos de sindicalistas e há, sobretudo, um que gostaria muito de ver organizado que é o das empregas domésticas. O sindicato já acabou, mas foi uma conquista do 25 de Abril. Era composto por mulheres muito interessantes, algumas bastante cultas, que tomaram a seu cargo politizar as empregadas e criar o estatuto do trabalho doméstico que ainda hoje é, felizmente, uma realidade. Neste arquivo, que ocupa quase sete metros de estante, temos de tudo: publicações, fotografias, fichas de associadas. Vamos ver se ainda consigo mergulhar neste arquivo!

O arquivo da engenheira Maria de Lourdes Pintassilgo é outro ao qual ainda quero dar seguimento. Temos materiais de três casas - das duas casas de Lisboa e da casa de Paris – que eu fui organizar pessoalmente com uma estagiária então ao serviço do CD25A. Empacotámos e retirámos os materiais todos da casa… São 200 caixas enormes que queríamos começar a tratar e descrever muito em breve, para a elaboração de um inventário com o tratamento das grandes secções dos materiais que temos. Temos o arquivo político de quando foi Primeira Ministra e também toda a sua atividade enquanto militante, dirigente da Universidade Internacional e como representante portuguesa na ONU. Este arquivo tem, além disso, materiais que são fundamentais para o estudo do feminismo em Portugal. É um arquivo espantoso!

Que momentos mais marcaram o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Digo sempre que a minha história com a Universidade de Coimbra é também, quase sempre, uma relação de amor. Como disse, quase não saí da Universidade de Coimbra, fui ficando sempre. Vivi aqui anos espantosos. Como há pouco contei um pouquinho, eu apanhei a mudança fundamental para um ensino mais livre e democrático. Vivi a história da gestão democrática. Claro que não posso esquecer esses momentos dos pós 25 de Abril, que foram fabulosos em termos de união entre estudantes.

O que aprendi culturalmente devo muito à Universidade de Coimbra, porque a UC era muito ativa em termos culturais, em áreas como o teatro, o cinema, a fotografia e também o desporto. Os meus anos de estudante foram anos de aprendizagem, porque a Universidade de Coimbra teve sempre esse caráter de ser integradora de todas as componentes da formação humana. Não era só o que aprendíamos nos bancos da Universidade, era a vivência cultural, o convívio e o conhecimento dos colegas mais velhos, dos professores.

Do ponto de vista profissional, foi a formação que aqui fiz que permitiu a minha entrada no mercado de trabalho. Eu saí com uma formação sólida e reparava que, nessa altura, dizer que vinha de Coimbra era quase um passaporte. E foi isso que aconteceu quando precisei de ir fazer um estágio na UNESCO, em Paris, no Centro George Pompidou, e na BBC. E fui precisamente porque tinham arquivos que nos interessavam muito para o trabalho do Centro, que pude recolher em cópia e que estão hoje aqui também.

O Teatro Gil Vicente foi também muito importante para a fruição da cultura na minha vida. Destaco também numa outra época o apoio e acolhimento da Universidade a associações profissionais para ações de formação, como é o caso da Associação Portuguesa de Bibliotecários e Arquivistas, a que presidi durante dois mandatos. Foi muito importante ver como a Universidade respondia às necessidades de formação dos seus trabalhadores, mas também da comunidade, numa época em que escasseava como hoje, afinal, a especialização técnica na área de Bibliotecários, Arquivistas e Profissionais da Informação e Documentação (BAD) no ensino secundário. Fico a dever tudo isto à Universidade de Coimbra, todos estes momentos importantes.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de partilhar com a comunidade UC sobre a importância de viver todas dimensões de formação que a Universidade proporciona?

Digo sempre a mesma coisa: temos que zelar por ser seres humanos de forma integral. Agradeço muito à Universidade de Coimbra a possibilidade de poder contactar com várias áreas de conhecimento, de aprender todos os dias alguma coisa. Noto que ultimamente melhorámos muito na comunicação dos acontecimentos, nos resumos que as notícias nos trazem todas as semanas. Se quisermos, podemos ter, todos os dias, alguma coisa importante para ver, ouvir ou em que participar.

Em relação ao Centro de Documentação 25 de Abril, as pessoas precisam de saber que têm aqui uma casa onde podem vir enriquecer-se nos conhecimentos que queiram melhorar e adquirir sobre o seu passado recente. E perceber como a ação individual se reflete também nas ações coletivas. É muito interessante ver-se aqui como diferentes participações de movimentos sociais puderam conduzir, por exemplo, à criação de serviços que para nós hoje asseguram direitos fundamentais: o ensino democrático ou o direito à saúde, através do Serviço Nacional de Saúde.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 07.04.2022