/ Caminhos na UC

Episódio #22 com Maria José Otão

De página em página, para descobrir e tratar os livros do passado

Foi enquanto aluna da licenciatura em História, curso da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), que Maria José Otão começou o seu percurso na Universidade de Coimbra (UC). Há quase 30 anos a trabalhar na UC, a técnica superior dedica os seus dias aos livros antigos, folheando-os e analisando-os para descobrir e registar a sua história. O gosto pela leitura surgiu enquanto escutava os contos da avó, foi crescendo com as obras de Camilo Castelo Branco e efetivou-se durante o liceu, com as leituras obrigatórias e recomendadas. Atenta às ferramentas do futuro, que permitem que os livros, antes guardados, sejam consultados por pessoas ao redor do mundo através de bibliotecas digitais, é também nos pequenos detalhes da leitura rotineira que descobre sempre um bocadinho mais sobre as publicações do passado.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso na Universidade de Coimbra começa enquanto aluna da Faculdade de Letras. Frequentei e concluí a licenciatura em História. Esse é o meu primeiro contacto com a Universidade. Depois de terminar a licenciatura, ainda estive mais um ano a frequentar um curso de Ciências Pedagógicas, porque esse curso permitia-nos seguir a via do ensino e era uma maneira de seguir a via profissional e de ingressar no mercado de trabalho. Saí da Universidade de Coimbra e fui dar aulas. Fui colocada em Leiria, na Escola Secundária Rodrigues Lobo. Antes de ser colocada, tinha-me inscrito (também na Faculdade de Letras da UC) no curso de especialização em Ciências Documentais, do qual acabei por desistir, uma vez que tinha sido colocada. Estava a trabalhar, dava aulas também ao curso geral noturno e era impossível vir de Leiria para Coimbra para frequentar as aulas. E, por isso, nesse ano interrompi o curso. Mais tarde, acabaria por voltar ao curso, já a trabalhar na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), para concluir o curso de especialização em Ciências Documentais. Na altura, a Doutora Teresa Pinto Mendes, que era a diretora adjunta da BGUC, chamou-me ao gabinete dela e disse que fazia muita questão que eu frequentasse e terminasse a especialização em Ciências Documentais. E foi assim que acabei por voltar à FLUC e fiz a especialização. Queria referir que, durante muitos anos, esse curso – que hoje é uma licenciatura – foi o único curso ministrado em Coimbra para formar bibliotecários e arquivistas. E muitos bibliotecários desta casa estavam ligados a essa formação. E, portanto, a Biblioteca Geral teve também uma função de escola.

Por que escolheu trabalhar na Biblioteca Geral da UC?

Não foi uma escolha. Diria que foi até acidental. Em setembro, normalmente concorríamos ao Ministério da Educação. Era a segunda fase dos concursos e já havia muitíssimo menos vagas, porque as primeiras vagas eram para os professores efetivos e o que sobrava ficava para os que não eram efetivos. E nessa altura, todos aqueles que queriam dar aulas tinham essa peregrinação. Chegava setembro, íamos para onde hoje é o Colégio S. Jerónimo, porque havia ali uma pequena delegação do Ministério. As filas eram enormes, não imagina a quantidade de professores que se candidatavam nessa fase. Lembro-me que, na altura, na minha licenciatura éramos cerca de 160 a 180 alunos. Portanto, digamos que o ensino na área da História estava absolutamente saturado.

Numa dessas filas para entrega da candidatura para ser professora, encontro um colega de curso, o Nuno Guina, que, por acaso, me diz: “O Ministério da Cultura está a abrir uns concursos. Vê no jornal e se te interessar concorre”. Fui ao encontro daquela informação e concorri, acho que de imediato. Como o colega era da área de Arquivo, nem pensei duas vezes, enviei tudo, escolhendo a área de Arquivo. A 18 de setembro (lembro-me com precisão porque é o dia dos meus anos) recebi um telefonema do Palácio Nacional da Ajuda a perguntar se não quereria mudar a minha opção de fundos arquivísticos para fundos bibliográficos. Disse que sim, que não me importava nada. E esse primeiro passo estava dado: o trabalho a realizar seria na área das bibliotecas. E que trabalho era esse? Era um projeto muitíssimo importante, que passava por fazer o levantamento de tudo quanto eram incunábulos existentes nas bibliotecas portuguesas, de todo o país. Como a Biblioteca da UC reunia um conjunto de mais de 220 incunábulos, a minha vinda para cá tem precisamente a ver com isso. O trabalho a realizar tinha que ser feito aqui, porque era onde estavam. Havia edições incunabulares na Biblioteca Geral, no Departamento de Matemática, na Faculdade de Letras e na Faculdade de Medicina. Cheguei cá no âmbito desse projeto, que tinha a duração de um ano, mas que se prolongou no tempo com o inventário dos manuscritos musicais. Quando o inventário terminou, penso que terei entrado para o quadro logo de seguida.

Ao receber-nos, a Biblioteca Geral cria todas as condições para desenvolvermos o trabalho, como espaços físicos e o apoio logístico necessário. Na altura, foi a Doutora Graça Pericão, que era a responsável pela área de livro antigo, que ficou com a coordenação do trabalho. Quando terminámos o inventário, a Doutora Teresa Pinto Mendes teve a ideia – e fazia todo o sentido – de aproveitar existirem duas pessoas que tinham estado ligadas ao inventário e que, de certo modo, também tinham sido apoiadas e formadas aqui na casa, para irem para a Biblioteca Joanina. Na Biblioteca Joanina, existia um grupo pequeno e, portanto, nós seríamos uma mais-valia. E porquê a Biblioteca Joanina? Porque tinha um fundo de cerca de 60 mil volumes e era urgente dar uma certa continuidade àquele trabalho. E assim foi, fui com uma colega, – que ainda está aqui na casa e é hoje a diretora adjunta da BGUC, a Doutora Luísa Sousa Machado – em 2002 para a Biblioteca Joanina. Fomos com a missão de contribuir para a evolução daquele trabalho. Quem ditou as regras foi a Doutora Paula Fernandes Martins, que passou a ser responsável pela catalogação em geral e também pela área do livro antigo. Até aí, o que se fazia na Biblioteca Joanina, em termos catalográficos, era uma inventariação muito sumária. Com a nossa chegada, os critérios alteraram-se e passámos a fazer uma catalogação de nível completo. Estive na Biblioteca Joanina até 2010 e depois voltei para a Biblioteca Geral.

Como surge o seu interesse pelos livros?

A minha avó contava, com uma certa graça, que eu, muito pequena e ainda sem saber ler, conseguia repetir as pequenas histórias que ela me contava ao ponto de, quando era necessário virar a página, eu fazia-o no momento exato. Acho que ela se divertia com aquela minha proeza! Sempre fui estimulada a ler. Em casa, havia uma coleção de livros – que certamente existia em todas as casas – que era uma coleção de obras de Camilo Castelo Branco, editadas pela Parceria António Maria Pereira, e outras coleções como a coleção Azul. Mas, em particular, devorava os livros de Camilo Castelo Branco. De resto, talvez houvesse um livro proibido, que eu lia sem autorização, que era O Crime do Padre Amaro. A minha avó dizia sempre que aquele livro não se podia ler, só com as folhas cosidas! Depois, no liceu, foram muitos os livros de leitura obrigatória, e até mesmo sugeridos, que li. Talvez o meu gosto pela leitura tenha começado nessa fase, ao ponto de pensar muito seriamente em seguir um curso de Línguas e Literaturas, por exemplo. Mas não, não foi isso que aconteceu, de modo que o meu gosto pela leitura está muito ligado à minha atividade profissional, por defeito.

Trabalha na área técnica da Biblioteca Geral, designadamente na valência do livro antigo. Que tipo de trabalho é que desenvolve?

O livro antigo tem particularidades e especificidades que nenhum outro tem. No tratamento técnico do livro antigo, há uma base comum. Há normas que temos que seguir, há normas internacionais para a descrição do livro. Para além disso, temos que olhar para o livro antigo como um todo. Ou seja, estamos perante uma folha de rosto, que tem uma série de elementos que temos que registar. Normalmente, esses elementos são comuns a todos os livros: o título, o autor, a data de publicação, o local de publicação e o impressor. Isto é elementar, mas o livro antigo tem muito mais do que isso. Nele recuperamos autores secundários, que podem ser o tradutor, o impressor, um colaborador, um ilustrador, um livreiro. Há toda uma panóplia de coisas para a qual temos que estar muito atentos, porque isso faz toda a diferença entre aquele livro e os outros livros.

O que é que torna este trabalho entusiasmante?

O que torna o meu trabalho entusiasmante é o facto de ser diverso e me obrigar a pesquisas e a procuras constantes. Lembro-me que, no início, não tinha a noção de que podia usar uma série de ferramentas e, a partir do momento em que descubro o admirável mundo novo que são as bibliotecas e o facto de todos aqueles recursos estarem disponíveis e poderem ser consultados, o entusiasmo foi aumentando. E a evolução dá área foi ajudando no desenvolvimento do trabalho. Inicialmente, deu-se a conversão dos catálogos impressos e rapidamente a descrição dos registos foi evoluindo. A par disso, surgem as bibliotecas digitais e a ligação dos registos àquele recurso digital. Isso ajudou imenso quem trabalha com o livro antigo! Posso ter uma obra que não está completa, que não é perfeita, e idealmente devo dar a descrição daquele livro o mais completa possível. E, por isso, tenho que procurar em que biblioteca é que aquele exemplar existe de forma perfeita e completa. E aí sim, através desse exemplar, a descrição física pode ser total. Outro exemplo: se não tiver a página de rosto e todos os seus elementos, posso ir buscá-los a outros exemplares que existem. E depois deixo nas notas sobre o exemplar que estou a tratar tudo aquilo que faz parte da sua vida: todas as faltas que ele tem (porque aí está a diferença daquele exemplar), todas as vicissitudes por que ele passou e também a descrição da encadernação. São estes pequenos detalhes, ou grandes detalhes, que fazem toda a diferença do tratamento do livro antigo.

No seu percurso de quase 30 anos na Universidade de Coimbra, lembra-se do livro que teve o tratamento mais demorado?

São tantos os livros que já me passaram pelas mãos que não tenho nenhum caso que possa particularizar. Mas tivemos vários projetos aqui na Biblioteca que foram desafiantes, nomeadamente o início do projeto de digitalização. Levou-nos algum tempo, sobretudo porque tivemos que selecionar todas as obras, preparar os lotes, fazer as fichas bibliográficas, validar todas as imagens para que depois tudo pudesse ser carregado. A essa primeira fase, seguiu-se uma outra nas comemorações dos 500 anos da Biblioteca, em que carregámos mais 500 títulos. Hoje em dia, as bibliotecas digitais são uma forma de dar visibilidade ao livro antigo e aos fundos patrimoniais. O certo é que hoje, as bibliotecas nacionais, mas sobretudo as bibliotecas universitárias, têm evoluído muitíssimo, e bem, no tratamento e na divulgação do fundo antigo e patrimonial. Isso é inegável.

Que momentos marcaram particularmente o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Estou-me a lembrar da visita da Senhora Embaixadora de Israel à Universidade. Ela fazia muita questão de ver a Bíblia Hebraica. Nessa altura, calhou-me acompanhá-la e a apresentar-lhe a obra. Ela vinha na companhia da irmã. Tive que me preparar para alguma pergunta que pudesse surgir, até porque a Bíblia Hebraica é o primeiro livro do nosso cofre, tem alguma história conhecida, mas também tem muito por conhecer. Não é um livro fácil, desde logo porque é em hebraico e não me podia socorrer de qualquer elemento que estivesse na página de título, que também não é uma página de título comum, porque é formada por caracteres tão pequeninos, tão pequeninos, tão pequeninos que quase só com uma lupa é que poderiam ser lidos. Mas lá contei a história possível do livro e depois lembrei-me que havia umas anotações manuscritas – se não estou em erro, nas folhas de guarda – que tinham alguma relação com uma história familiar. Lembrei-me de, antes de elas saírem, chamar a atenção para aquela nota. E elas leram-na e foi assim um momento de grande intimidade entre as duas. Depois, mais tarde, da parte da Embaixada, formalizaram o agradecimento.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de partilhar com a comunidade UC sobre o que considera particularmente interessante na descoberta de livros?

Às vezes, um livro pode levar a outro livro. E lembrei-me de pedir um livro da Susan Sontag, que é O Amante do Vulcão, que me levou ao original, em que a autora se inspirou, de que existe um exemplar aqui na Biblioteca. Há esses momentos felizes em que conseguimos fazer a ligação entre o antigo e o moderno.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 10.02.2022