/ Caminhos na UC

Episódio #20 com Paula Veiga

As relações humanas e a cidadania, dentro e fora da sala de aula, como elementos essenciais no ensino do Direito

O percurso de Paula Veiga na Universidade de Coimbra (UC) começou em 1990, com o ingresso na licenciatura em Direito. E, ao longo dos anos, fez da Faculdade de Direito da UC a sua casa, com algumas idas e vindas que foram preenchendo o seu caminho com várias experiências no domínio do Direito. Mas foi no ensino e na investigação que encontrou o seu espaço, a área na qual é feliz. Tem lecionado várias unidades curriculares e investiga em vários subdomínios do Direito, como os direitos humanos ou a organização do poder político, mas, em todos os terrenos em que se move, as relações humanas assumem, sempre, um papel preponderante. E é em torno da importância que atribui à capacidade de olhar o outro que tem desenvolvido a sua carreira, da investigação ao encontro com estudantes em sala de aula.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso é um bocadinho atípico. Nasci em Moçambique, vim para Portugal com dois anos. Vivi em Viseu com a minha avó, mas já fiz o ensino secundário em Coimbra. Depois, entrei na Faculdade de Direito em 1990 e terminei o curso em 1995.

Por que escolheu estudar Direito?

Acho que não tem uma explicação muito racional. As pessoas com quem lidava mais de perto eram da área das Ciências Exatas. Mas sempre gostei muito de Filosofia e de História. Acho que sempre tive uma vertente idealista forte, que se mantém (às vezes traz-me dissabores, outras vezes traz-me grandes alegrias). Na área das Ciências Humanas, seguir História não se colocava muito, colocava-se, eventualmente, a Sociologia. Também ainda pensei em Psicologia. Mas, depois, achei que o Direito era um curso mais de banda larga, o que permitia que associasse o gosto pela História e pela Filosofia com um tipo de profissão que também tem a ver com uma relação interpessoal. E isso agradava-me muito

O que é que torna esta área tão aliciante?

O Direito é um mundo. Dentro do Direito, seguindo a lógica da minha personalidade, há claramente uma vertente mais idealista, que identifico com a área do Direito Público. E foi sempre nessa área que trabalhei. Claro que estudei tudo na licenciatura, mas, a partir do 5.º ano do curso (que na altura existia 5.º ano), comecei a afunilar para as Jurídico-Políticas. O Direito Público é uma área que mexe muito com conceitos, com institutos que, para mim, buscam justiça, igualdade, universalidade, satisfação de direitos. Tudo isso é muito estimulante do ponto de vista do trabalho.

A licenciatura em Direito é uma formação à qual é reconhecida uma particular exigência. Na sua perspetiva, o que é contribui para que a área seja caracterizada assim?

Todos os cursos podem ser difíceis ou fáceis. É óbvio que este pode ser mais trabalhoso, desde logo porque tem uma parte teórica e uma parte prática. E, se não dominarmos bem a parte teórica, é muito difícil resolver os problemas na prática. Mas, além disso, acho que há um problema de base: é que o Direito lida com as relações humanas. O substrato do Direito são as relações humanas e as relações humanas – não só, mas também – que se estabelecem na esfera pública.

A educação cívica das gerações, de há uns anos para cá, tem vindo a decrescer. E o que é que se nota? Reportando-me àquilo que costumo lecionar, por que é que os alunos os alunos acham muito difícil? Diria que, como eles não se interessam por atos eleitorais, por História Política recente, por História Internacional, o discurso é de que têm que fixar tudo. E não, não têm que fixar tudo. Mas, como não têm essa educação de base – a educação de vida pública –, depois o curso claro que se torna muito difícil. E, uma vez mais, torna-se mais difícil nas tais disciplinas do Direito Público, porque as disciplinas do Direito Privado (muito embora também tenham, pontualmente, essas dimensões) exigem saber mais sobre determinado instituto ou conceito. No Direito Público não, aqui tem que se ter uma visão macro.

Ser docente e investigadora sempre foi o seu objetivo ou ponderou seguir outro caminho na área do Direito?

A mim, na vida, as coisas foram sempre acontecendo. Não quer dizer que não seja sonhadora, mas tenho essa capacidade de não andar sempre à procura do que não tenho. Ora, com a minha carreira também foi assim. Não quer dizer que não tenha experimentado outras coisas. Acabei o curso em 1995 e concorri a um estágio na União Europeia. Entrei e fui a representante portuguesa nesse ano em Bruxelas. Gostei imenso do que estava a fazer. Entretanto, aqui em Coimbra não abria concurso, tanto que até concorri a um mestrado em Leuven, de Direito Internacional Público. Fui admitida e estava para começar o ano letivo lá quando fui avisada de que tinham aberto concurso cá. Concorri e acabei por vir para Coimbra. É óbvio que gosto imenso da vida académica, mas, se me aparecessem outras coisas pelo caminho, também as faria. Nessa altura, estive em Coimbra cerca de um ano e meio e, entretanto, fui convidada para integrar o corpo técnico de um ministério, como adjunta de um secretário de Estado, porque tinha parte de ligação ao Direito Constitucional, que era a cadeira que dava. Aceitei e fui. Depois cheguei a um momento em que aí sim, tive que decidir. Porque ainda não tinha feito mestrado, o tempo estava a passar e tinha duas possibilidades: ou fazia mestrado e doutoramento ou continuava a ter várias experiências profissionais. No cômputo de tudo, não acho que só pudesse ter feito isto, mas acho que isto é o que faço melhor. E nisto é onde sou mais feliz.

As suas áreas de interesse são várias e vão desde a corrupção aos Direitos Humanos. De todas, qual é a que tem, para si, especial importância?

Ao longo dos anos, tenho trabalhado na área do Direito Internacional Público e do Direito Constitucional. E já pus um pé, digamos assim, em vários domínios nessas áreas. E há uma que encontrei e em que consigo fazer o “casamento” entre o Direito Constitucional e Direito Internacional, que é a matéria dos Direitos Humanos. E porquê? Se calhar, pela minha vertente idealista, pela minha vertente solidária, pela minha vertente de buscar um mundo melhor. É aquela área em que conseguimos fazer investigação para perceber como é que podemos ajudar, não só a nível nacional, mas, também, a nível internacional, para que as pessoas tenham mais direitos e tenham consciência desses direitos. E depois há outro aspeto: na área dos Direitos Humanos (para quem não é jurista, isto pode ser um bocadinho difícil de perceber), se não for vista nos termos clássicos, estamos sempre a falar de situações de fragilidade, de vulnerabilidade, de pessoas que verdadeiramente precisam de apoio. E aí acho que há um espaço de progressão muito grande. Diria que é esta a minha área querida.

E sobre essa área que lhe é tão querida, que é um tema tão premente, por que razão é tão importante abordarmos este tema enquanto sociedade?

Se a pessoa – o ser humano – não estiver no centro das coisas, o mundo deixa de fazer sentido. Se calhar não o mundo físico, mas o mundo em sociedade. Essa questão é muitíssimo importante. E porque é que acho importante? Contrariamente àquilo que se calhar pude pensar nos anos 90, até no início dos anos 2000, em que a sociedade tendia a diminuir as diferenças, os fossos, as dificuldades e a necessidade de ajuda, isso não se tem verificado. E, infelizmente, a pandemia veio ainda trazer ao de cima esses problemas. Basta vermos o que estamos, atualmente, a passar: andamos a discutir questões de vacinação em que já estamos a definir que dose vamos dar quando à maior parte da população mundial ainda não foi sequer administrada uma dose. Mesmo no plano nacional, a questão da pandemia trouxe à tona dificuldades enormes, que se prendem, por exemplo, com a vida dos estudantes. Acho que ficaram muito patentes as dificuldades de acederem a meios informáticos quando achamos que todos os cidadãos em Portugal têm um telemóvel, um iPad, que todos têm tudo. Isso não é verdade e a pandemia veio mostrar isso.

Acho que os Direitos Humanos são uma matéria onde ainda temos um espaço de progressão muito grande. Claro que não é uma matéria muito antiga. A Declaração Universal dos Direitos Humanos fez 70 anos há pouco tempo. Não podemos achar que é uma matéria muito antiga. Acho é que houve um encantamento na passagem do século XX para o século XXI, e parecia que o mundo se estava a abrir, que ia resolver todos os problemas – como na informática e na digitalização –, mas na realidade esses problemas não ficaram resolvidos e alguns ainda se acentuaram.

E na sua perspetiva, qual é o papel que assume a universidade na construção da cidadania e da sensibilização perante os Direitos Humanos?

A universidade tem que ser muito ativa nesses aspetos. Não estou nada convencida daquela visão clássica de que uma universidade tem como única missão a transmissão do conhecimento livresco, seja ele no livro ou no digital. Acho que muita da base da vida universitária deve estar na formação das pessoas, a vários níveis: dentro da sala de aula, fora da sala de aula, através do associativismo ou de outro tipo de iniciativas. Claro que tudo pode ser difícil de concretizar, porque, às vezes, as pessoas não participam. O caminho passa por espraiar esta cultura e fazer com que as pessoas sintam que esta dimensão é importante. É fazer sentir que a universidade não tem apenas a dimensão de transmissão do conhecimento, mas deve ter uma visão muito mais macro e que tenha sempre em atenção as pessoas, não apenas os docentes e discentes, mas toda a universidade, toda a sua estrutura.

Quais é que foram os momentos que mais marcaram o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O primeiro talvez tenha sido a minha última prova oral nesta casa, em que já era licenciada. Tinha-me licenciado na época anterior, em época normal, e depois decidi ainda ir fazer uma melhoria de nota. A melhoria era a Teoria do Direito e o professor era o famoso Professor Doutor Orlando Carvalho. Esse foi um momento que me marcou, porque achei interessante que o próprio Professor Doutor Orlando me tenha dito, dentro da sala, que já tinha terminado o curso. Eu não tinha esse sentimento... Esse é o primeiro momento que me marca, se calhar porque também gostei da prova oral. E foi o momento em que senti verdadeiramente que tinha acabado o curso! No papel, já tinha acabado na época anterior, mas foi ali que senti que acabei esse caminho.

Depois, há um outro momento que me marca, e tem a ver com a minha ingenuidade. Foi quando entrei para assistente estagiária aqui em Coimbra. Não sabia nada de protocolo e de como é que as coisas se passavam dentro da casa. E, na minha ingenuidade, fui à Ala de São Pedro e bati à porta do gabinete do Professor Doutor Gomes Canotilho. Ele abriu a porta e eu disse “olhe, Senhor Doutor, eu sou assistente estagiária e gosto muito de Direito Constitucional. Se eu pudesse trabalhar com o Senhor Doutor gostaria.” Esse é um momento que me marca, porque depois ele acaba por ser o meu Mestre.

Tenho também um outro momento forte que me marca, mas num outro plano. É o momento das provas de doutoramento, diria que particularmente o final do dia das provas de doutoramento!

Recuperando a minha passagem por cá, talvez sejam estes os três grandes momentos.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de partilhar com a comunidade UC sobre o nosso papel, individual e coletivo, na proteção dos Direitos Humanos?

Diria que todos nós somos seres imperfeitos. Todos nós temos os nossos egoísmos, temos os nossos dias menos bons. Se percebermos isso e, ainda assim, nos dias em que as coisas não nos correrem tão bem conseguirmos olhar para o lado, conseguirmos fazer alguém sorrir e tornar a vida do outro mais fácil – quer na relação interpessoal, quer na relação institucional, seja um colega, um funcionário ou um estudante, - acho que assim estamos a dar um contributo muito grande.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado em 13.01.2022