/ Caminhos na UC

Episódio #2 com Rui Rio

Da cozinha ao tabuleiro: o combate ao desperdício alimentar enquanto projeto onde cada um/a pode fazer a diferença

A Universidade de Coimbra foi recentemente considerada a instituição de ensino superior portuguesa mais sustentável pelo ranking The Times Higher Education Impact Rankings 2021, que analisou o cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável desenhados pela Organização das Nações Unidas. Tendo alcançado uma pontuação de 92.7 em 100, foi no indicador Erradicar a Fome que a Universidade de Coimbra alcançou a melhor pontuação, sendo a 3.ª melhor universidade do mundo a dar resposta a este objetivo. Foi este o mote para a conversa com Rui Rio, médico veterinário do Gabinete de Apoio à Gestão e Inspeção Higio-Sanitária dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra (SASUC). Na Cantina Estádio Universitário, conversámos sobre o que faz um médico veterinário na gestão de alimentos, sobre as boas práticas contra o desperdício alimentar e sobre a sensibilização da comunidade académica nos processos de produção e de consumo de refeições.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

O meu percurso começa no ano de 2002, no Gabinete de Inspeção Higio-Sanitária dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra. Comecei com o Administrador Dr. António Luzio Vaz e tive a possibilidade de, ao longo destes anos, trabalhar com todos os Administradores que esta casa teve, desde o Dr. Jorge Gouveia Monteiro, a Dra. Regina Bento, a Professora Maria da Conceição Marques e agora o Dr. Nuno Correia. Todos esses Administradores trouxeram coisas novas, coisas diferentes, e é um privilégio ter trabalhado e ter aprendido com eles.

Como se articula a sua formação em Medicina Veterinária com o trabalho que desenvolve no quotidiano nos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra?

É muito simples. Embora pareça, nos dias que correm, que a medicina veterinária está, para público em geral, associada à clínica de pequenos animais e à clínica de grandes animais, no fundo, um médico veterinário é um sanitarista na sua essência. E o que é isto de ser um sanitarista? É que está associado à não transmissão de doenças dos animais aos humanos, quer seja dos pequenos animais, quer seja dos grandes animais. E na área em que desenvolvo a minha atuação, dos alimentos de origem animal para o ser humano, há todo um trabalho de médicos veterinários “na sombra”, que fazem a inspeção diária da carne que comemos, do peixe que comemos, o trabalho dos médicos veterinários municipais que é essencial para os mercados e todo o comércio de produtos alimentares que existe nas cidades. Portanto, todos os alimentos que nos chegam à mesa de origem animal têm um controlo médico-veterinário. Os SASUC não fogem a essa regra e todos os alimentos que chegam são inspecionados por mim ao longo do seu percurso: portanto, desde que entram, numa fase primária, durante a confeção, até chegarem ao prato dos nossos utentes.

Que motivos o levaram a escolher trabalhar nesta área profissional?

Foi uma área que sempre despertou a minha curiosidade e ao longo dos anos tenho sentido que é bastante gratificante fazer aquilo que gostamos e podermos envolver-nos nesses projetos e todos os dias sermos melhores profissionais. Depois, passado algum tempo, é que sabemos se fizemos a escolha certa ou não. E, de facto, continuo, passados 20 anos desde que estou nesta área, a gostar muito do que faço e todos os dias surgem coisas novas que nos surpreendem.

Quais os grandes desafios de trabalhar numa área que tem muitas regras e muitos/as intervenientes?

Primeiro temos de nos saber adequar às necessidades dos nossos utilizadores, neste caso maioritariamente os alunos. E essas necessidades são específicas de Faculdade para Faculdade. Nesta em que nos encontramos hoje, na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra, as necessidades energéticas são obviamente maiores, porque são alunos da área do Desporto, e, portanto, terão outros gastos energéticos, e isso também é tido em conta na elaboração das ementas. E, depois, salvaguardar sempre que os alimentos que são servidos são de primeira qualidade e de extrema segurança para quem utiliza os nossos serviços.

Há algumas experiências que o tenham marcado particularmente e que gostaria de partilhar connosco?

Tenho uma história que recordo particularmente, pela surpresa que me causou. Foi um projeto que fizemos com o nosso Jardim de Infância, em que decidimos pôr as crianças a receber um tubérculo de uma alface, que depois plantaram e seguiram todo o processo. No final fomos lá com os mesmos cuidados que aplicamos aqui nas cantinas – a higienização dos produtos, a desinfeção – e ensinamos as crianças a fazer estes procedimentos e começaram, assim, a ingestão de vegetais, algo que é sempre difícil nestas idades. Curiosamente, os pais começaram a interpelar as educadoras porque os filhos em casa estavam a pedir, à noite quando chegavam a casa, os vegetais. E, portanto, foi um feedback muito positivo que os pais transmitiram, no qual se verificou uma mudança de comportamentos, o que é muito bom nestas idades e que é uma ação que pode perdurar para o resto da vida.

Em que outros projetos desenvolvidos pelos SASUC já esteve envolvido?

Nestes 20 anos, felizmente, tive a oportunidade de estar ligado a vários projetos, maioritariamente ligados à segurança alimentar, desde logo os Jogos Europeus Universitários, em 2018, em que tivemos que montar uma operação que garantisse a segurança alimentar das pessoas que nos visitaram e dos atletas, pois é sempre um desafio mudar de país e gerir novos produtos, e, portanto, tivemos que acautelar todos esses cuidados para evitar que fossem interrompidas provas ou algo do género.

Também temos anualmente um congresso de segurança alimentar, que fazemos em parceria com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, em que convidamos oradores de vários espectros para nos ajudarem e também para sermos interventivos, para além daquele que é o nosso campo de atuação.

Temos também uma ação que fazemos nas nossas cozinhas, chamada UC com as mãos na massa. Nesta atividade, nós convidamos um docente da Universidade de Coimbra para vir confecionar, nas nossas instalações e com os nossos cozinheiros, um prato típico português, que depois é servido. A atividade tem tido um enorme sucesso e viemos a descobrir pessoas com muito jeito para a cozinha dentro da comunidade académica.

Tive a oportunidade de participar também numa parceria com a Câmara Municipal de Coimbra que se chamava Os gatos vão à escola, em que adotámos um gato para o Jardim de Infância. Muitas das crianças nunca tinham contactado com animais e, através desta atividade, tiveram esse contacto, tiveram formação, para saberem como cuidar, como identificar quando está chateado, quais os cuidados de higiene, as desparasitações e os cuidados médico-veterinários.

Também participei num projeto que me deu bastante gozo fazer, dado que era de índole técnica bastante avançada, em que foi pensado um projeto de centralização de todas as refeições num só espaço. Depois, a partir desse espaço, seriam distribuídas as refeições pelas unidades alimentares, permitindo uma otimização de recursos e também diminuindo as perdas que cada pequena confeção pode causar e que vai de encontro ao que hoje em dia se quer, que é a maximização de recursos.

No que diz respeito ao projeto Menos = Mais: Redução do Desperdício Alimentar com que missão foi construído? E que resultados já foram alcançados desde a sua implementação?

O estudo e análise do desperdício começou em 2014, não sob a forma de projeto, dado que ninguém tinha, na altura, a noção da dimensão do nosso desperdício. Se dissermos a cada português que desperdiça, em média, 130 kg de alimentos por ano ninguém vai acreditar, porque achamos que fazemos tudo corretamente. E nós também partimos dessa premissa, de que se calhar não estaríamos assim tão mal, que não havia grandes problemas. E quando fizemos a primeira medição, em novembro de 2014, percebemos que tínhamos um desperdício de 8 toneladas por mês. E o que fazer com este número? Foi então que constituímos uma equipa de trabalho e decidimos utilizar o alarmismo contido nesta informação, porque é bombástica, a nosso favor. Recorremos aos média, transmitindo esta informação, de forma a sensibilizar a comunidade académica. Isto porque o desperdício tem sempre duas vertentes. Uma que nós controlamos e que passa por, nas nossas cozinhas, fazermos a utilização dos talos das couves nas sopas, da fruta com casca na salada de frutas, da utilização da farinha de casca de ovo. Nas nossas cozinhas, tivemos também o XIRIBITATATATÁ, que foi a nossa primeira grande confeção com desperdícios, que era um cesto de massa folhada em que nos púnhamos produtos que sobrassem. Neste caso, é preciso ter muita atenção quando se fala de desperdício. Em primeiro lugar, para garantir que a solução que encontramos não é mais cara do que o nosso problema. E, em segundo lugar, para transmitir confiança, dado que os alimentos que sobram e que estão em perfeitas condições não são restos. Por exemplo, tudo o que segue nos tabuleiros de refeição já não é utilizado, mas o que sobra nas nossas cozinhas da preparação de uma refeição e que foi devidamente acondicionado pode ser utilizado, como é o caso da fruta que é não é escolhida pelos alunos quando estão na linha de levantamento da refeição, a chamada fruta feia. Nós temos que dar uma solução a essa fruta e, por isso, fazemos mais sobremesa de maçã assada, fazemos mais salada de frutas, e assim deixa de ser para nós um desperdício esse tipo de produtos. No que diz respeito à outra vertente, nos tabuleiros dos utilizadores das unidades alimentares, que é o desperdício propriamente dito, que não pode ser reutilizado e que não temos grande forma de salvar, só conseguimos mesmo prevenir através das campanhas de sensibilização que temos, para que as pessoas levantem só o que vão consumir.

Este trabalho que temos vindo a fazer ao longo do tempo tem-nos trazido muito reconhecimento. Somos convidados para ir falar do nosso exemplo em muitos lugares. Por exemplo, o Exército veio ver recentemente os procedimentos que utilizamos para o combate ao desperdício para eles também utilizarem. Temos participado em muitas tertúlias e congressos, onde explicamos a nossa forma de trabalhar e o que nos levou a este caminho, a chegar a este patamar. E é curioso, porque nós começámos a participar em concursos onde nós, sem meios, participávamos com empresas que tinham grande capacidade financeira e um marketing enorme. Nós tivemos que escolher o nosso caminho e chegamos a este reconhecimento com a nossa sagacidade e não pelos meios financeiros, porque aí estaríamos a ir pelo caminho de gastar mais do que a salvar. Os nossos colaboradores também nos ajudam muito e dão sugestões. E sem esta parceria com eles tudo isto seria impossível, porque ninguém trabalha sozinho. E é bastante aliciante este tipo de parceiras e trabalho em conjunto.

O que considera que cada membro da Comunidade UC pode fazer para combater o desperdício alimentar?

O principal problema com que nos debatemos aqui é a tendência “eu paguei por isto, vou levar tudo” e muitas vezes não se vai consumir tudo. O produto com maior percentagem de desperdício a nível nacional, e também globalmente, é o pão. E os SASUC também não fogem à regra. Toda a gente traz o pão, mas nem toda a gente o consome. E depois de vir para a mesa ele não pode voltar a ser utilizado. Se tivesse ficado do lado de lá e não no tabuleiro, no caso das unidades alimentares do SASUC, era um produto que seria doado. E o que é que nós fazemos? Tentamos sensibilizar para que sirvam só aquilo que vão comer e, depois, se quiserem mais, se sentirem mais fome, as equipas estão sensibilizadas para isso e são servidos com mais comida.

De que forma, também nas nossas casas, é possível contribuirmos para combater o desperdício alimentar?

Um dos grandes motivos que nos leva a desperdiçar em casa é, de facto, cedermos à tentação das promoções. E, depois, não termos o cuidado de arrumar corretamente os produtos em nossa casa. O que é que nós fazemos? Nós acabamos de chegar com os sacos das compras e, quer no nosso frigorífico, quer na nossa despensa, vamos empurrando para trás para colocar os novos produtos. E o que é que isso vai causar? Quando dermos conta, os produtos que ficaram mais atrás estão fora de validade e isso é desperdício. Os grandes pratos de aproveitamento são da cozinha tradicional portuguesa: os rissóis, os bolos de bacalhau… Tudo isso são pratos que surgiram do aproveitamento de sobras. Portanto, nós já temos uma grande tradição nas nossas casas de aproveitarmos sobras. As questões como a arrumação dos produtos em casa são pequenas dicas às quais, por vezes, não estamos atentos e todos nós caímos nesse erro de não sequenciar bem os produtos quando os colocamos nas nossas despensas ou nos nossos frigoríficos. E quando damos conta já não estão aptos para consumo.

Que mensagem gostaria de partilhar com a Comunidade UC sobre a importância de combater o desperdício alimentar?

A mensagem é simples e é muito direta. Um terço de todos os produtos que são produzidos são desperdiçados, que é uma grande quantidade de alimentos e que representa custos na ordem dos 600 mil milhões de euros anualmente. Com esse valor, nos conseguiríamos ajudar a combater a fome de 800 milhões de pessoas por ano, conseguiríamos diminuir a emissão de gases com efeito de estufa. Só para dar um exemplo, se o desperdício fosse um país, era o terceiro maior país a emitir gases de estufa logo a seguir à China e aos Estados Unidos da América. Isto para percebermos a dimensão que os nossos pequenos gestos podem ter a nível global, como é o caso dos tais 130 kg que nós desperdiçamos por ano e que anteriormente mencionei, embora a nível europeu os portugueses estejam bem posicionados, se compararmos, por exemplo, com a Holanda, em que cada habitante estraga 500 kg de comida por ano. Cada um deverá dar o seu contributo, ser um elo dessa corrente, para um planeta muito melhor.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado em 06.05.2021