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Episódio #17 com Cristina Rufino

Passar o dia a dia a viajar à volta do mundo através dos objetos do Museu da Ciência

É no meio de milhares de peças e de animais do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra que Cristina Rufino trabalha todos os dias. Este é o mundo onde chegou em 2006, após ter feito a sua formação académica na Universidade de Coimbra. Depois de 15 anos a fazer este trabalho, o Museu continua a ser um mundo para descobrir. Nesta entrevista, viajamos até vários cantos do mundo através da coleção de borboletas ou do esqueleto de hipopótamo, que até há pouco tempo escondia tantos segredos. Segredos e novas descobertas que acontecem a partir da inventariação que diariamente acontece neste espaço singular da Universidade de Coimbra. Um processo constante de análise e de pesquisa que tem permitido, ao longo de muitos anos, que tanto se descubra sobre a vida na Terra.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Comecei o meu percurso em 1994, quando iniciei a licenciatura em Biologia. Vim de Santarém, pela primeira vez fora de casa e da alçada dos meus pais, e foi um bocadinho assustador, especialmente porque Biologia não foi a primeira opção, gostaria de ter ficado colocada em Engenharia do Ambiente. Mas, entretanto, conheci muitos amigos! A dada altura, integrei a Associação Académica de Coimbra, quando estive numa lista para a Direção-Geral que ganhou as eleições. E foi aí que comecei a ter uma noção completa da Universidade, comecei a ter conhecimento da Academia, conheci pessoas incríveis e participei em projetos maravilhosos.

Quando terminei a licenciatura, afastei-me um bocadinho destas atividades, porque queria mesmo trabalhar, e fui trabalhar para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, mas não gostei assim tanto da experiência porque gostava do trabalho de campo, gostava de biodiversidade e de animais, em particular de insetos. Acabei por ter a oportunidade de fazer um estágio do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, nas Dunas de São Jacinto, e para realizar este trabalho precisava do apoio de um laboratório. Acabei por contactar a Universidade de Coimbra, mais precisamente o Laboratório de Solos, e vim para cá, com as amostras que recolhia no trabalho de campo nas dunas, para fazer a triagem, separar os animais por grupos e comecei a fazer o inventário. Nessa altura, tive a oportunidade de trabalhar diretamente com uma professora que era especialista em colêmbolos (que são uns pequenos artrópodes que vivem no solo) e ela ensinou-me a identificar alguns grupos. Depois continuei a estudar, tive a oportunidade de fazer mestrado e, uma vez mais, trabalhei com invertebrados e insetos e fiz inventários, um trabalho que me trouxe, antes de terminar o mestrado, ao Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. E foi em 2006 que iniciei o meu percurso no Museu. Foi aí que descobri a minha paixão por esta profissão! Depois foi todo um percurso até agora, com altos e baixos, e com muitas aventuras pelo meio.

Até ao momento em que o seu percurso se cruza com o Museu da Ciência, nunca tinha colocado a hipótese de aqui trabalhar?

Não. Tanto mais que o Museu esteve fechado durante a minha licenciatura. Passei essa fase da minha vida em Coimbra sem o conhecer. Lembro-me de um dia em que foi necessário passar pelo interior do Museu para ter acesso ao anfiteatro, mas como estava tudo escuro e tapado não me lembro praticamente de nada.

O Museu da Ciência tem inúmeras peças, nomeadamente na coleção de Zoologia. E para manter todos os animais há um ritual de conservação. Como é que é feita a preservação?

Estes animais foram tratados há muitos anos. Para terem uma noção mais exata, muitos deles têm mais de 250 anos e a maioria tem mais de 150 anos. Alguns são ainda do século XVIII e a maioria do final do século XIX. Foram tratados com processos muito antigos, utilizando produtos químicos muito tóxicos, cuja utilização é proibida hoje em dia. E é por isso que dizemos aos visitantes para não tocarem nos animais. Ao contrário do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, da Universidade de Lisboa, que tem um taxidermista (a pessoa que dá forma à pele dos animais), que faz montagens recentes das peles que são cedidas pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, aqui apenas fazemos a conservação preventiva dos nossos espécimes que já são muito antigos. Fazemos uma limpeza com aspiração e pincelamos para tirar o pó. E em todo o Museu fazemos desinfestações regulares: de 3 em 3 meses, vem cá uma empresa fazer esse trabalho.

Existem outros tipos de conservação, como os meios líquidos. Aí temos que verificar o nível do álcool: se estiver a descer é porque está a evaporar e temos que verificar se o frasco está com mazelas; ou se o selante está danificado temos que colocar novo selante, reidratar e encher o frasco novamente com álcool. Temos ainda outro tipo de conservação: os insetos a seco nas caixinhas, espetados com alfinetes. Neste tipo de conservação, a desinfestação não resulta e, por isso, cada caixa tem um pequeno recipiente com algodão em que se introduz um inseticida para ficar a caixa protegida de pragas. Tal como nas bibliotecas, nos museus estamos sempre sujeitos a pragas que vão degradar os nossos exemplares. Isto acontece porque estamos a ir um bocado contranatura. O normal será nascer, viver, morrer e depois os nossos corpos decompõem-se. E nos museus tentamos prolongar ao máximo os corpos após a morte. Por isso, temos que preservar de uma forma artificial. E se as pessoas antigas foram capazes de preservar durante todo este tempo, quase 250 anos, nós também vamos tentar prolongar mais a vida após a morte dos nossos exemplares.

Sobre o esforço para a preservação, por que motivo é tão importante que exista acesso a estes exemplares na Zoologia?

O Museu, tal como as bibliotecas, é um mundo para descobrir. Temos que pensar que este é um museu universitário, que foi programado para o ensino. Nos séculos XVIII e XIX não havia facilidades – nem PowerPoint, nem Internet – e os alunos aprendiam aqui muito sobre diferentes tipos de animais de terras longínquas, às quais não teriam normalmente acesso. E era através destes animais que conseguiam ver o mundo num só espaço e através do qual podiam viajar por todas as terras e estudar esses animais.

O que é que torna o seu trabalho no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra entusiasmante?

É o contacto com novas experiências. O meu trabalho normal é fazer o inventário e a estimativa do acervo da Zoologia aponta para a existência de cerca de meio milhão de exemplares. Mas ainda não temos certeza do número final, pois ainda temos muito para inventariar. Há muitos catálogos que ainda não estão informatizados e o objetivo será dar acesso às pessoas, nomeadamente a investigadores. Se as pessoas não souberem que temos cá determinados exemplares, não poderão vir cá consultar e estudar. E esse trabalho de pesquisa enriquece muito o valor do nosso Museu e do nosso espólio.

O trabalho no Museu é muito diversificado. Preparamos empréstimos para investigadores ou para exposições noutros museus; recolhemos amostras de unhas de leão e filmamos, com a investigadora que está em Moçambique a dar-me indicações sobre como proceder à amostragem; faço visitas guiadas a grupos tão variados como professores e alunos da pré-primária (que são públicos fantásticos); tiro fotografias; contacto com investigadores de várias áreas que querem, por exemplo, estudar mochos ou corujas de S. Tomé para identificar uma nova espécie que descobriram ou que querem ver as caixas de insetos à procura de exemplares do século XVIII; temos artistas plásticos a inspirarem-se no nosso espólio para fazerem filmes ou peças de teatro. Colaboramos com todos estes projetos e participamos em projetos científicos. Por exemplo, estamos envolvidos no projeto VACALOURA, um projeto de ciência cidadã, e no projeto Pollinet, que estuda os polinizadores e no Museu temos uma coleção de mais de 300 mil exemplares de insetos. Os investigadores também passam por cá para estudar insetos para saber mais sobre alterações climáticas, para saber que insetos e outros animais já estão extintos e perceber quais é que existiam em abundância nos séculos XVIII e XIX e que agora estão ameaçados. Fazemos imensa coisa. É fascinante trabalhar aqui! Dá-me mesmo muito prazer.

Para si, qual é a peça do Museu que tem um significado especial?

Há muitas que são especiais. E cada vez que estou a pesquisar ou a fazer o inventário começo a envolver-me naquela coleção e naquele exemplar e quero sempre descobrir mais coisas! Neste momento, estou a fazer o inventário das borboletas do Carvalho Monteiro, da Quinta da Regaleira. São dois armários e já vou em 1 600 borboletas analisadas. Ainda não tinha pegado nesta coleção e à medida que fui fazendo o inventário e analisando o que tinha escrito nas etiquetas, reparei que havia borboletas de terras cujo nome nunca tinha ouvido. Estive a pesquisar onde ficavam esses países e essas cidades e descobri que temos borboletas de todos os cantos do mundo! Comecei logo a pensar em fazer um catálogo ou uma rubrica sobre uma viagem ao mundo em 80 borboletas. Estou sempre a ter ideias! E, por tudo isto, neste momento estou a gostar muito de estudar estas borboletas.

E qual é a peça que suscita mais curiosidade nas pessoas que visitam a coleção de Zoologia?

O óbvio será a baleia. O esqueleto da baleia é impressionante, não há animal que impressione mais pelo seu tamanho, especialmente quando as luzes do teto estão desligadas e os focos refletem a sombra do esqueleto. E isso é maravilhoso, é o ex-líbris do Museu, sem dúvida! Mas o que suscita mais curiosidade são os chamados monstros. Toda a gente fica muito curiosa com o cãozinho com sete patas, com o gatinho com duas cabeças, com o cordeiro com os corpos separados e apenas uma cabeça no meio. Não acreditam que é real e acho que esses serão os objetos que geram mais curiosidade nos visitantes.

Como é que se prepara este processo de transmitir o passado e as suas histórias através das peças do Museu?

A partilha de informação pode ser feita no seguimento de pedidos, quando alguém quer saber mais sobre um objeto ou um espécime, e outras vezes é por mero acaso. Temos tido muitos alunos de mestrado a estudar algumas peças e uma das histórias engraçadas prende-se com a visita de uma aluna que queria estudar os crânios dos bois, porque nós temos uma coleção de diferentes raças de bois. Nessa mesma altura, chegou ao Museu um caderno de despesas antigas e estivemos a ver se havia alguma informação útil nesse livro de despesas. Não encontrámos nada sobre isso, mas estivemos a ver tudo o que estava ligado à Zoologia nesse livro, que tinha as despesas de todas as secções, e encontrámos uma despesa de contratação de um carpinteiro para esculpir ossos em madeira de laranjeira para completar o esqueleto do hipopótamo. E eu fiquei um bocado chocada com a informação, porque passei pelo hipopótamo imensas vezes e a etiqueta da peça dizia que era um esqueleto completo do animal. Fomos ver com “olhos de ver” e descobrimos alguns ossinhos esculpidos em madeira! E a partir daí foi um desenrolar de acontecimentos.

Nessa altura, estava no Museu uma investigadora de cobras. Essa coleção, na sua maioria, foi doada por um senhor brasileiro chamado Luís de Carvalho, primo do Carvalho Monteiro. E pedi a uma colega para ir pesquisar informação sobre este senhor, porque não sabíamos nada e a coleção estava no Museu desde 1899. Ela foi pesquisar, disse que não tinha encontrado informação, mas descobriu informações sobre o esqueleto do hipopótamo, que tinha sido doado em 1902. Descobrimos que tinha sido doado pelo Governador de Angola a Bernardino Machado, que era professor de Antropologia nessa altura, que depois o doou ao diretor da secção de Zoologia, Bernardo Aires. E foi assim que se começou a formar o puzzle!

Não conseguimos parar de investigar mais coisas sobre o esqueleto e pedimos auxílio a pessoas que conheciam mais sobre Antropologia. Veio cá uma colega antropóloga, que viu que havia vários furos no esqueleto, um deles no crânio, mas como havia regeneração do osso significava que a bala não tinha sido responsável pela morte. Encontrámos outro furo numa costeleta, também com regeneração do osso, por isso também tinha sobrevivido a essa bala. Viu também que o osso de uma pata estava muito deformado, o que significava que ele sofria de artroses. Também contactei uma especialista em hipopótamos para me dizer mais ou menos a idade do exemplar. Tirei uma fotografia aos molares e ela disse que ele deveria ter cerca de 50 anos quando faleceu. Foi um trabalho extraordinário e foi muito gratificante conseguirmos fazer uma história e conseguir tantos factos e novos dados para transmitir aos visitantes, a partir de um esqueleto sobre o qual não tínhamos informação nenhuma. E serviu também para fazer um artigo científico. Foi muito bom! Para além disso, fiz também uma pequena história infantil, para contar de uma forma mais brincalhona a vida daquele esqueleto.

Sobre a doação de peças, qual é o padrão desta transferência de exemplares?

Normalmente os doadores tinham sempre ligação à Universidade, ou porque tinham estudado cá, ou porque eram professores, muitas vezes nem estavam ligados à Zoologia. Por exemplo, temos muitas ofertas dos jardineiros do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra que, quando iam a explorações para apanhar plantas, também capturavam muitos animais. Muito deles eram insetos, porque insetos e plantas estão sempre muito relacionados. A pessoa que anteriormente referi, Carvalho Monteiro, estudou aqui na Universidade. E o seu primo, Luís de Carvalho, era uma incógnita, porque não tínhamos ainda encontrado a relação e o motivo pelo qual ele nos tinha deixado o legado da sua coleção. Houve uma aluna que se debruçou sobre esse tema e descobriu que ele esteve cá, mas era do Brasil. E foi engraçado descobrirmos que tínhamos cá uma coleção sem ele ter estudado na Universidade.

Quais foram as histórias que marcaram particularmente o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Há muitas histórias! Dos tempos da minha passagem pela Associação Académica de Coimbra tenho muitas histórias impressionantes. Lembro-me de ter participado pela primeira vez na Tomada da Bastilha que foi espetacular! Ir às manifestações de estudantes em Lisboa foi também algo muito bom. Lembro-me também de ter participado nas atividades pré-Queima, em que formámos a única equipa feminina para participar no torneio Rave da Bola.

No Museu da Ciência, marcou-me muito o roubo dos chifres de rinoceronte. Isso impressionou-me bastante, especialmente porque fiz a visita guiada dos participantes no roubo (sem imaginar, claro, quem seriam). O roubo só aconteceu cerca de 15 dias após a visita às nossas instalações. Todo o processo pós-roubo foi muito marcante, porque tive que colaborar com a Polícia Judiciária, nomeadamente na identificação dos suspeitos. Os responsáveis pelo roubo integravam um gangue que estava a ser investigado pela Europol. Eram irlandeses e estiveram por toda a Europa, em todos os países que tinham colónias africanas com rinocerontes, e foram cirurgicamente roubando museus e antiquários. Foi um processo stressante e, sem dúvida, não esquecerei essa história.

Ao longo da entrevista destacou o seu envolvimento na Associação Académica de Coimbra. O associativismo foi determinante no seu percurso?

Sim, o envolvimento na Associação Académica de Coimbra foi uma reviravolta na minha vida de estudante. E aconselho todas as pessoas a terem essa experiência! Conheci pessoas fantásticas e tive experiências ótimas. E, ao mesmo tempo, envolvi-me também mais com a Universidade, porque na Associação fazia parte do pelouro do Ambiente e organizávamos várias iniciativas em que contactava professores para darem palestras ou para serem entrevistados para o nosso jornal, que era o Milhafre. Realizámos também atividades para plantar árvores no jardim da AAC, limpámos o lago do jardim, fizemos inúmeras iniciativas. Conheci pessoas de todas as secções culturais e desportivas. Na minha passagem por lá fiz coisas que, apenas estudando, não imaginaria que existiam. Acho que este envolvimento é muito bom para a formação das pessoas enquanto pessoas. E a partir do meu envolvimento na Associação acabei também por me envolver em outros projetos de voluntariado e noutras associações culturais.

Para terminar esta conversa, há algum segredo sobre o Museu da Ciência que gostaria de partilhar com a comunidade UC?

Existem muitos segredos, mas penso que o mais impressionante (e que me choca um bocado) é que não sei se a comunidade UC conhece muito o Museu. E não sei se sabem que é gratuito visitá-lo: os alunos e os funcionários podem visitá-lo quantas vezes quiserem e quando lhes apetecer! Neste momento, mesmo estando a parte da Zoologia fechada ao público, se, por exemplo, os professores organizarem uma visita, poderão visitar esta parte com uma nova perspetiva e poderão ver mais os bastidores do Museu e o que está a ser feito. Acho que é uma grande oportunidade e gostaria de convidar as pessoas a visitar o Museu. Estamos aqui prontos para receber tanto visitantes, como também alunos que aqui queiram trabalhar, para terem a experiência de voluntariado ou, quiçá, fazerem uma dissertação de mestrado ou tese de doutoramento. O Museu pode ser trabalhado de diversas formas: tanto acolhemos projetos multimédia, que dão vida aos animais (e há vários projetos de mestrado que foram feitos aqui); pode ser trabalhado por pessoas de História; ou por pessoas da Informática, através de machine learning, que nos pode ajudar a fazer a inventariação mais rápida e os informáticos podem ajudar-nos neste processo. E há tantas outras pessoas e áreas que nos podem ajudar a fazer coisas aqui no Museu! Seria fantástico ter mais participação da comunidade UC, também para o Museu partilhar o seu espólio, não só da Zoologia, como todas as outras áreas. Isso seria fantástico!

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCom

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCom

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado em 02.12.2021