/ Caminhos na UC

Episódio #15 com João Rui Pita

O percurso em efervescência de quem nunca se cansa de procurar novos conhecimentos para contar a história da farmácia

Cresceu sempre perto do universo farmacêutico. Na família de João Rui Pita os elementos que se dedicaram à farmácia são muitos e foi esta a área que escolheu como destino. Chegou à Universidade de Coimbra (UC) na década de 80, para estudar na Faculdade de Farmácia (FFUC). E tal como na família, a farmácia nunca mais saiu do seu caminho. Durante o percurso, já colheu dois prestigiados prémios internacionais que destacam o seu papel na história da farmácia, reconhecimento que foi um estímulo para continuar o seu trabalho. Um trabalho de docência e investigação, onde assume com estima e respeito a passagem do testemunho aos/às estudantes, e onde privilegia sempre a interdisciplinaridade, fundamental para que os saberes se cruzem e para que, em conjunto, conduzam a novos caminhos de descoberta.

Quando e como começou o seu percurso na Universidade de Coimbra?

Comecei o meu percurso profissional na Universidade de Coimbra ainda antes de ter concluído a licenciatura. Fui monitor na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, afeto ao Laboratório de Farmacognosia. Isto aconteceu em 1986 e no final desse ano abriram concursos para assistente, concorri e fiquei como assistente estagiário afeto ao Laboratório de Tecnologia Farmacêutica. E desde 1986 tenho trabalhado sempre em dedicação exclusiva aqui na FFUC.

Como é que as ciências farmacêuticas surgiram na sua vida?

As ciências farmacêuticas surgiram na minha vida de uma forma relativamente natural. Venho de uma família com imensos farmacêuticos: o meu bisavô, o meu avô, muitos tios e primos. O meio farmacêutico era um meio em que estava permanentemente. Quando criança, recordo-me que passava algum tempo na farmácia de um tio, irmão da minha mãe; ia também muitas vezes à farmácia de um tio-avô e de outros familiares. O meio farmacêutico esteve sempre metido na minha vida ou eu metido no meio farmacêutico. Tive alguma hesitação no final do ensino secundário, mas quis o acaso que viesse mesmo para a Faculdade de Farmácia!

O que é que mais o fascina nesta área?

O que mais me fascina? O trabalho a nível profissional que um farmacêutico e as farmácias (que são a área mais representativa do setor farmacêutico, em quantidade) fazem junto da população. Um trabalho fantástico, um trabalho assistencial e humanitário que é louvável! E desde criança que presenciei esse tipo de trabalho e essas funções. Depois também me fascina o medicamento: as descobertas medicamentosas que têm contribuído para o aumento da esperança de vida, para a cura de doenças que não tinham cura, para tornar crónicas doenças que não eram crónicas, para a redução da mortalidade e para viver com melhor qualidade e com mais bem-estar.

Quais são as maiores recompensas do trabalho que desenvolve, particularmente o contacto com estudantes?

Os múltiplos desafios que os alunos me colocam e aquilo que lhes posso passar são dinâmicas muito interessantes. O meu orientador de tese, o professor doutor António Pinho Brojo – uma pessoa com quem aprendi muito, cientificamente e também humanamente, a quem rendo uma justa homenagem –, dizia-me sempre que quem convive com os jovens rejuvenesce! E dizia-me também que só viria a perceber isso dali a muitos anos. E cada vez mais tenho percebido isso: o trabalho com jovens universitários é um constante desafio ao nosso rejuvenescimento.

Como sou também professor, além da história da farmácia, de deontologia e legislação e de sociologia da saúde isso também aumenta a minha responsabilidade de, de alguma maneira, servir de elo de transmissão. Ou, como uma colega minha dizia, temos a missão de passar o testemunho, um certo cordão umbilical do próprio exercício da profissão farmacêutica e da ciência farmacêutica. E tento mostrar que a história da farmácia não é apenas uma cronologia, cheia de datas. A história da farmácia é muito mais do que isso! Fomenta uma identidade cultural, uma identidade científica, uma identidade profissional que é importante para a formação de estudantes. Isto porque as ciências farmacêuticas são uma formação que conduz a um exercício profissional em diversas áreas do campo farmacêutico.

A história da farmácia tem também o objetivo de fornecer uma linha de pensamento não dogmática, que passa por não aceitarmos aquilo que hoje é válido como algo que é definitivamente válido. E essa confusão acontece muitas vezes: chegou-se a um determinado patamar e pensa-se que aquilo que foi atingido é o corolário de muitos anos de trabalho (o que é verdade) e que já não é preciso fazer muito mais porque se atingiu o topo. E não, há sempre uma renovação constante! Hoje é válido, hoje é certo, mas daqui a uns anos não será. Houve muitas práticas, muitas descobertas e exercícios profissionais que eram feitos e que se pensava que eram o melhor. Na altura, era o melhor que havia, com os meios existentes. Mas chegou-se à conclusão que era preciso modificar. Todo o processo científico e profissional das ciências farmacêuticas é um processo dinâmico e a história da farmácia tem por objetivo contribuir para alertar os alunos para este contexto de mudança constante e dinamismo.

No seu percurso de investigação, qual é que foi a descoberta sobre a história da farmácia que fez que tem um significado mais especial?

Há várias. Uma delas é o trabalho que fiz para o doutoramento, em que estudei o ensino farmacêutico e a ciência farmacêutica na Universidade de Coimbra entre finais do século XVIII e inícios do século XIX. Fiz o estudo entre a reforma Pombalina e a reforma de Passos Manuel (1772-1836). As balizas cronológicas tinham que ver com o ensino e durante esse período estudei a prática e a investigação científica na Universidade. Estudei o ensino farmacêutico durante esse período e também o trabalho numa farmácia – ou botica, como era chamada – que era o dispensatório farmacêutico da Universidade, fundado pela reforma Pombalina, que servia para o ensino farmacêutico e servia como farmácia pública. Foi um trabalho que desenvolvi com muita alegria e que me permitiu chegar a conclusões totalmente inovadoras, porque ainda não existia praticamente investigação sobre este tema. Através dele consegui perceber a convergência entre três elementos: como era praticada a ciência farmacêutica nessa época na UC; como era a prática profissional através da botica; e como era o ensino da farmácia. Temos o privilégio de ter na zona antiga da Universidade, no Polo I, naquilo que é hoje o Museu da Ciência, o antigo dispensatório farmacêutico (que existia exatamente no Colégio de Jesus). Desde a construção, houve muitas adaptações do edifício, mas a verdade é que continuamos a ter o privilégio de ter espaços antigos que não foram felizmente demolidos ou sujeitos a bombardeamentos (como aconteceu em outros países com a Segunda Guerra Mundial) e continuamos a viver aqui o espírito do lugar, nas palavras de Michel van Praët, famoso museólogo francês. E o estudo deste dispensatório farmacêutico permitiu-me fazer um estudo bastante aprofundado da própria reforma Pombalina das ciências experimentais.

Há outras conclusões a que cheguei que foram também importantes. Por exemplo, a investigação sobre as farmacopeias portuguesas, através da qual cheguei a conclusões inovadoras, nomeadamente sobre o que influenciava as farmacopeias e a literatura farmacêutica portuguesa. Outro trabalho que desenvolvi com bastante entusiasmo – em colaboração com a professora Ana Leonor Pereira, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – foi dedicado aos aspetos biográficos do primeiro Prémio Nobel português das ciências, Egas Moniz, que permitiu chegar a descobertas importantes sobre este médico e cientista. E poderia falar ainda de muitas outras descobertas relevantes para a história da farmácia portuguesa.

O que é que ainda gostaria de descobrir e compreender sobre a história da farmácia?

Tanta coisa! Usando uma linguagem farmacêutica, a minha cabeça está sempre em efervescência! Está sempre a pensar em novos desafios, em coisas novas. Tenho sempre uma visão otimista sobre o trabalho científico. De modo particular, há um tópico que me interessa e me intriga já há muitos anos e que ainda não consegui resolver, mas que espero vir a conseguir daqui a algum tempo. Sabemos que o ensino farmacêutico na Universidade de Coimbra se inicia nos finais do século XVI, no reinado de D. Sebastião, mas não se sabe a data certa. Já fiz diferentes tentativas para saber uma data muito mais aproximada, mas ainda não consegui apurar esse dado. Esse é um dos tópicos que gostaria de ver esclarecido.

Há também outros tipos de trabalhos, que têm sido uma linha continuadora do meu trabalho de investigação. Por exemplo, em Portugal, até quase finais do século XX, fomos essencialmente um país reprodutor de saber científico, em matérias do campo das ciências da saúde. A nível de inovação, há pontos de inovação, mas por diferentes condicionantes organizacionais, políticas, sociais e económicas, não fomos propriamente um país de inovação. E penso que compreender isto é importante para percebermos a identidade do nosso país, para percebermos, inclusivamente, vários aspetos da história de Portugal, em particular da história da ciência, e que pode ser também importante para projetarmos o nosso futuro. É importante saber quando chega a inovação, que estabelecimentos e que instituições é que acolhem essa inovação e os seus mecanismos de reprodução. E, depois, sobre essa inovação que chega do estrangeiro, perceber se em Portugal é feita alguma adaptação da inovação. Este tema tem sido um fio continuador de todo o meu trabalho científico: o que mexe com a história institucional, com a história das práticas científicas, com as redes que são estabelecidas e com os circuitos do conhecimento.

Há também o estudo de grupos de medicamentos e de práticas científicas, que tenho desenvolvido com colegas, que se prende com os medicamentos para psiquiatria. Tem sido uma área à qual tenho dedicado também atenção para perceber a receção desses grupos medicamentosos. São estudos que têm sido desenvolvidos em outros países e que em Portugal é urgente que também se façam.

Também gostaria de fazer um estudo mais global sobre a história do ensino farmacêutico em Portugal, porque o ensino é uma área em que tenho trabalhado desde sempre, particularmente na Universidade de Coimbra. O ensino farmacêutico está muito relacionado com a própria área científica e o desenvolvimento dessa prática científica, porque muitos dos executantes da ciência estavam ligados às instituições de ensino.

Gostaria também de continuar a desenvolver trabalhos de fronteira com outras áreas do saber científico, porque a farmácia está no cruzamento de muitos saberes científicos. E, por isso, quando estudamos a história da farmácia inevitavelmente estamos, muitas vezes, a colocar o nosso investimento científico na história de outras ciências: na história da química, na história da medicina, na história da botânica. Há um relacionamento muito forte, quase como se fosse uma plataforma giratória para diferentes trabalhos de investigação que me parecem mais produtivos quando são trabalhos de investigação interdisciplinares. Como podem perceber, são muitas as minhas áreas de interesse!

Mas todo o trabalho que faço também é fruto de um conjunto de excelentes colegas da nossa Faculdade e Universidade e de fora da Universidade, de Portugal e do estrangeiro. De magníficos discípulos que tenho tido. A colaboração e a interação são decisivas!

Durante o seu percurso na Universidade de Coimbra, que momentos mais marcaram o seu caminho?

São vários momentos, que posso dividir em tipos de momentos. Lembro-me muitas vezes, com bastante saudade, de conversas que tinha com professores cá da casa, que já estão jubilados, que eram conversas científicas, mas, ao mesmo tempo, eram conversas de cultura universitária muito, muito interessantes e extremamente enriquecedoras do ponto de vista humano. Recordo-me, por exemplo, do meu orientador, o professor António Pinho Brojo, que me falou de vários assuntos que só vim a compreender na íntegra muito tempo depois, é curioso! Recordo também as conversas com o professor Proença da Cunha, com quem iniciei o meu percurso como monitor na Faculdade de Farmácia e com quem aprendi muito; as conversas com as professoras Lurdes Rebelo e Lurdes Costa. Estas figuras transmitiram-me muitos ensinamentos, com quem vivi momentos e conversas que foram marcantes para mim!

Vivi também outros momentos marcantes, como o doutoramento e o dia em que defendi a tese e as provas de agregação. Ou, por exemplo, quando me empenhei muitíssimo na formação de um centro de investigação da UC, o CEIS20, um processo em que destaco o papel fundador do professor Luís Reis Torgal. E recordo também muitas conversas que tive com ele, científicas e não científicas. Aliás, na minha tese de doutoramento, o professor Luís Reis Torgal – e rendo-lhe aqui também justa homenagem – teve também um papel importantíssimo na minha formação. No percurso no CEIS20, recordo a constituição de um grupo de investigação, que foi algo fantástico, marcante e com resultados importantes. E a este propósito rendo também homenagem à professora Ana Leonor Pereira que tem sido uma companheira fantástica de todo este processo. Passei também por outros momentos marcantes aqui na FFUC, que têm que ver com a satisfação pela descoberta científica.

Outro momento muito marcante foi quando deixámos as instalações no Polo I e viemos para o Polo III. Nos primeiros tempos da mudança, havia uma certa angústia e saudade das instalações antigas, é muito curioso! As antigas instalações estavam completamente sobrelotadas, não há qualquer comparação com o espaço que hoje temos, e pode até parecer patético pensar nesta saudade quando mudámos para algo melhor. Mas para mim foi marcante deixar um espaço com uma sociabilidade muito característica de campus universitário, que na altura em que nos mudámos ainda não existia no Polo III. No Polo I, estava na faculdade e em poucos minutos me punha no Arquivo da Universidade de Coimbra, onde faço muita investigação, ou na Biblioteca Geral da UC. Era um privilégio! Esta mudança de instalações foi marcante e foi também importante do ponto de vista da história da farmácia, porque pela primeira vez a Faculdade de Farmácia teve um edifício construído de raiz para o ensino farmacêutico. O Palácio dos Melos foi uma adaptação, porque era um edifício que pertencia à Reitoria e foi adaptado para ter as instalações da FFUC. E simbolicamente esta mudança foi muito importante!

Houve outros momentos importantes na minha vida académica, como a distinção com dois prémios mundiais da história da farmácia em 2019: a medalha Carmen Francés, de história da farmácia, e o prémio Cátedra Centenária de História da Farmácia, atribuído pela Universidade Complutense de Madrid. São dois momentos importantes porque são dois dos prémios mais importantes a nível mundial da história da farmácia e isso deixou-me maravilhado. Foi muito bom!

Assinalo aqui também, entre outros, o 2.º lugar no Born from Knowledge - Web Summit, Concurso Nacional de Ideias Inovadoras baseadas na formação e no conhecimento científico, um prémio conferido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e pela Web Summit em 2016.

Para terminar esta conversa, que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC sobre o papel que as ciências farmacêuticas têm na sociedade?

O papel do medicamento e o trabalho do farmacêutico são importantíssimos na sociedade moderna. Sempre foram! Ao longo da história, o trabalho do antigo boticário e o trabalho do farmacêutico são trabalhos de grande importância, do ponto de vista da saúde, do ponto de vista social e do ponto de vista económico. É trabalho de grande, grande e significativa importância. Nas aulas de história da farmácia e de sociologia da saúde, tento demonstrar essa importância, colocando em cima da mesa a atitude altamente positiva que o medicamento e os farmacêuticos têm na sociedade. E isso ficou bem plasmado agora com a questão da COVID-19: o papel que as farmácias tiveram em toda a pandemia e o papel que as vacinas e as vacinações tiveram para a sociedade.

O campo das vacinas é de grande relevância e a história das vacinas mostra o imenso valor e o papel que os medicamentos têm na sociedade atual, que sempre tiveram ao longo da história. Quando, em 1796, surge a primeira vacina, contra a varíola, houve enorme euforia em torno da vacinação e no início do século XIX a população europeia aumentou graças à vacinação contra a varíola, muito longe ainda da descoberta dos vírus e das bactérias. Foi tudo feito de uma maneira extremamente empírica, não científica. As vacinas nos moldes modernos surgem com Pasteur, no final do século XIX, mas Jenner fez intuitivamente aquela imunização contra a varíola. As vacinas e os outros medicamentos, assim como o farmacêutico, têm um papel importantíssimo na sociedade atual! E através da história da farmácia tento dar a conhecer aos alunos esse imenso papel que os medicamentos e o farmacêutico têm na nossa sociedade.

E já que se menciona a COVID-19, queria aqui distinguir também o papel importantíssimo que a farmácia militar tem tido ao longo da história. O meu avô era farmacêutico militar e tenho também percorrido alguns livros que ele tinha. Ele deixava muita coisa escrita sobre questões relativas à farmácia e com estas leituras também me tornei muito sensível à área da farmácia militar.

Para terminar, voltando um pouco ao início da entrevista, acho que a história da farmácia contribui para criar esta cultura farmacêutica, uma identidade de grupo. E é importante também, junto da população, alertar que o farmacêutico é muito mais do que alguém somente atencioso e bem-disposto que está na farmácia pronto a receber, a aconselhar e a ceder os medicamentos. Um farmacêutico é isso, mas é muitíssimo mais que isso! E um medicamento é muito mais do que um produto de consumo. É algo altamente complexo, que tem que ser equacionado sob muitos pontos de vista: do ponto de vista científico, técnico, económico e social. E esse é um dos fascínios da farmácia e do medicamento. É um mundo fascinante, mas com os pés muito bem assentes no terreno e com uma utilidade social fortíssima.

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Marta Costa, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado em 04.11.2021